A Iniciação Feminina: O exemplo das Arréforas da Acrópole de Atenas

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Nova Acrópole

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A par da religião grega, que visava a integração do indivíduo na comunidade, sempre existiram cultos secretos, onde se entrava através de uma «iniciação» individual. O acto de «iniciar» (myeîn), dava ao participante o título de «iniciado» (mýstēs), que gerou as nossas designações de «mistério» e «iniciação». Porém, também as expressões órgia e teleté são utilizadas para este ritual, ou «festa da iniciação», que coincidia com o correcto desempenho das «provas» ou ritos prescritos para cada processo. As iniciações mais comuns são precisamente aquelas em que os rapazes e as raparigas, em ritos separados, entram na idade adulta, e se «iniciam» como tal.

É este o caso das Arréforas (arréphoroi), duas jovens raparigas que todos os anos eram escolhidas entre as famílias nobres, para servir e viver no templo de Atena Polias ou no Erecteion, na Acrópole de Atenas, durante o período de um ano. De acordo com Pausânias (1.27.3), na noite das Arreforias, a última noite que passavam na Acrópole, elas cumpriam um misterioso ritual de transportar objectos desconhecidos e sagrados, que lhes eram dados pela sacerdotisa de Atena, através de uma passagem subterrânea, até ao santuário de Afrodite nos Jardins. Às duas Arréforas eram então dados outros objectos sagrados e secretos, que estavam tapados (num cesto e com um manto?) que elas traziam de volta para a Acrópole.(1) Depois eram substituídas por duas novas Arréforas.

«Cena do peplos» no friso oriental do Párthenon, séc. V a.C. Representa o momento em que um rapaz (à direita) recebe do Arconte Basileus o novo peplos de Atena, durante as Panateneias (alguns autores defendem que não se trata de um rapaz, mas de uma rapariga).À esquerda duas Arréforas levam cestos na cabeça que foram entregues por uma sacerdotisa. (25)

Como as Arreforias eram um ritual secreto, existem poucas representações e pouco se sabe sobre o que realmente faziam. Sabe-se no entanto, que durante o ano, vigiavam a oliveira sagrada e teciam o novo peplos da deusa. Este entrar no domínio de Atena, a deusa da «técnica» e das «artes manuais», é uma preparação ritual que as jovens tinham para a vida adulta num novo lar, onde se dedicariam à tecelagem e outras artes manuais. Pelo facto de esta ser uma deusa virgem que «nunca tocou o colo de uma mãe» representa para as raparigas o afastamento do fogo do lar, em direcção a um novo fogo, que é o da família para onde serão transferidas quando casarem. Ainda que estas raparigas tivessem entre 7 e 10 anos, é discutível que o fizessem só nestas idades, dado que o ritual é sobretudo um «entrar na idade adulta», uma iniciação generalizada que estava ligada à menstruação e ao casamento. Alguns autores defendem que esta se tratava de uma cerimónia de «preparação» mais do que uma «iniciação» real, um género de provação e superação da virgindade antes da menstruação.(2) Também as famílias destas duas raparigas comemoravam frequentemente, e com orgulho, o serviço prestado à deusa, como atestam algumas inscrições.(3) Dando a entender que, embora secreta, esta era uma prática socialmente valorizada e importante no processo de continuidade e fama familiar.

 

A designação arréphoros, para além de todas as tentativas falhadas de tradução, é geralmente entendido face à sua função, tal como nas outras fases de «iniciação» femininas,(4) num composto de arréton (“secreto”; “mistério”; “sem-nome”) e phérō (“levar”), portanto elas são as «portadoras do mistério» ou daquilo que «não tem nome» e é «desconhecido». No entanto, a sua etimologia leva-nos igualmente à ideia de «portadoras do orvalho».(5) Este «orvalho» tem a significação no imaginário grego de “fecundidade” e “germinação”.(6)

Esta prática poderá não ter sido isolada, tal como nos diz o coro em Aristófanes, onde poderia ser a fase inicial de um longo processo de «iniciação» até ao casamento:

Desde os sete anos que sou Arréfora.

Aos dez, fazia eu bolos sagrados para a nossa fundadora (Atena).

Mais tarde, na minha túnica açafrão, fui ursa nos Braurónios.

E enfim, depois que me tornei numa bela rapariga, fui Canéfora,

com o meu colar de figos secos.(7)

Estatueta de terracota com representação de Arréfora ou Canéfora. Museu Nacional de Copenhaga.

De acordo com este processo de iniciação feminina, a rapariga servia primeiro como portadora do cesto (ou estojo) sagrado e secreto (arréphoros), depois, aos dez anos trabalhava na moagem do cereal para a Atena archēgétis (aletris), um papel obscuro que devia consistir na alimentação ritual da deusa e que nunca foi representado na arte. Depois entrava no serviço de «ursa» (árktos) em honra de Ártemis nos Braurónios, bem documentado e muito popular, no qual mais raparigas participavam e que consistia na participação das raparigas em jogos e corridas, onde usavam um chitén curto, e tal como parece acontecer com as Arréforas, este estádio representa a morte da virgem e o nascimento da mulher. Finalmente, regressava a Atenas como portadora do cesto (kanēphóros). Depois destas quatro fases rituais, entrava na última: o casamento.(8) A partir desta mesma passagem de Aristófanes, A. Brelich encontrou um esquema universal para a iniciação feminina na Ática, dividida em quatro fases: arréphoros (tecem o peplos de Atena); alétris (cereal da deusa); árktos (serviço à deusa Ártemis em Brauron); e kanēphóros (transporte do cesto).(9)

O figo (relacionado com as Canéforas) tem conotações sexuais e opõe-se à agricultura (frutos trabalhados pelo homem).(10) O facto de as raparigas usarem um colar de figos em torno do pescoço, não deixa de ter conotações com o casamento indo-europeu, em que a legítima escolha da noiva era feita através do acto de lançar os braços, ou uma coroa de flores, em torno no pescoço do marido.

Talvez seja entre as Arréforas de Atenas que o simbolismo da «iniciação» grega feminina se torna mais claro. Em Atenas, três meses antes das Panateneias (provavelmente em Julho), tinha lugar um ciclo de festas que assinalava o final do ano e o início do novo. Dois meses antes das Panateneias, tinha lugar a misteriosa festa nocturna das Arreforias. É com esta festa que termina o serviço sacerdotal de um ano das duas jovens (as Arréforas) que viveram e serviram na Acrópole.(11)

O ritual é descrito da seguinte forma por Pausânias:

Elas colocam sobre a cabeça o que a sacerdotisa de Atenas lhes dá para transportarem, mas nem esta sabe o que lhes dá, nem elas aquilo que transportam. Porém, na cidade de Atenas existe um precinto sagrado de “Afrodite nos jardins” (Afrodite Kepois), não muito longe, e ao longo dele passa um caminho subterrâneo natural – é aqui que as virgens descem. Lá em baixo, deixam aquilo que levaram e trazem [para a Acrópole] outra coisa que encontram embrulhada. Depois disto são dispensadas.(12)

Depois disto, elas são substituídas por outras duas raparigas.(13) Não há registo daquilo que seria transportado nos cestos que estavam fechados, nem aquilo que elas traziam para cima oculto por um véu.(14) É interessante que as jovens passam do domínio de Atena para o de Afrodite, e depois regressem a Atena, o que as relaciona com a iniciação no casamento. Este ritual nocturno que termina no santuário de Eros e Afrodite, é depois complementado pelo sacrifício de uma cabra.(15) Não se podia levar cabras para a Acrópole, pois estas eram inimigas da oliveira, à excepção do sacrifício que era feito nesta altura.(16) Noutras situações a morte da rapariga é simbolicamente relacionada com o sacrifício de uma cabra. Do sacrifício da cabra (aíx) sobra a pele da cabra (aigís), a égide, o peitoral de Atena que ostenta a Medusa. Trata-se assim do sacrifício simbólico da rapariga que se vai casar-se.

Este ritual está representado no mito das filhas de Cécrops, o rei primitivo, meio homem, meio cobra, no qual Atena deu às filhas de Cécrops, Aglauro, Herse e Pandroso (Pseudo-Apolodoro, Biblioteca, 3.14.1-2) um cesto com algo no seu interior e proibiu-as de a abrir. No entanto durante a noite, a curiosidade feminina levou Aglauro e Herse a abrire o cesto, e lá dentro viram Erecteu, o filho secreto de Hefesto. Nesse preciso momento surgiram duas serpentes de dentro do cesto que assustaram as raparigas e as levaram ao suicídio, que se atiraram da Acrópole. Algumas versões referem que se atiraram da Acrópole para o mar). (Pseudo-Higino, Fábulas 166; Pseudo-Apolodoro, Biblioteca, 3.14.6)(17) Este lançar-se ao mar é sugestivo, dado que se trata igualmente uma morte feminina (simbólica) para dentro do seu elemento natural (a água), de onde sai ritualmente como mulher. Neste declive rochoso de onde as duas filhas de Cécrops se atiraram, está o santuário de Aglauro. Pandroso, a filha que não abriu a cesta nem se suicidou, deu nome ao precinto sagrado em frente ao Erecteion, onde cresce a oliveira sagrada. Esta oliveira, coberta de orvalho (símbolo da fertilidade masculina/celeste que desce sobre a feminina/terrena) representa a continuidade do «poder» de Atena e da Acrópole, tal como Pandroso representa a continuidade de Cécrops.

Erecteu e Atena são venerados no mesmo templo, no Erecteion, par que corresponde ao rei micénico e à deusa doméstica , estando esta relação ligada à «serpente guardiã da casa»(18) A serpente pertence a Atena e está obviamente relacionada com a fertilidade fálica.(19) A serpente representa igualmente Erecteu, (Pausânias 1.24.7) assim como o surgimento «inesperado» dos mortos aquando das libações e o «poder» feminino em geral.

Hefesto, que havia causado o nascimento de Atena (através de um golpe de machado no «alto» de Zeus), irá ele mesmo perseguir a deusa virgem e derramar o seu sémen sobre a sua coxa, enquanto esta foge. É por pouco que Atena não se torna mãe do primeiro rei. (Pausânias, 3.18.13)(20) Atena limpou com lã o sémen que Hefesto derramou na sua coxa, e lançou-o à terra, de onde nasceu Erecteu.(21) E provavelmente, as cestas que as duas Arréforas levavam na cerimónia nocturna, continham restos de lã e azeite que serviam para a lamparina de Atena que ardia o ano inteiro.(22)

Representação de uma Arréfora (?) num frasco proveniente de Corinto.

As escavações na encosta norte da Acrópole puseram a descoberto uma escadaria íngreme (que conduzia originalmente a uma nascente na cidadela micénica), e a oriente, nas rochas, um pequeno santuário de Eros,(23) local para onde as Arréforas se deveriam dirigir durante o seu percurso para, ou a partir do templo de Afrodite. A partir deste santuário não sabemos o que faziam as Arréforas.

Não deixa de ser curioso que o caminho nocturno das Arréforas as leve até Afrodite (amor) e depois a Eros (amor erótico), quando o mito nos diz que a curiosidade feminina das duas filhas de Cécrops as levou a ver o filho secreto de Atena e Hefesto, ou seja, o filho ilegítimo, o filho tido fora do casamento, e fruto de uma relação proibida. Este mito, e o seu simbolismo, é semelhante àquele que leva Pandora a abrir a jarra de todos os males, ao de Dánae que é colocada com o seu filho ilegítimo numa caixa, mas ainda mais àquele que leva a adolescente Kunti a sentir curiosidade (desejo?) pelo sol e a invocá-lo, como resultado deu à luz Karna, que teve de abandonar numa arca, e lança-la ao rio, a fim de preservar o bom nome. (Mahābhārata 1.111.18-22.)

No mundo antigo é dada uma especial importância aos filhos legítimos (dentro de um casamento legítimo), e como tal, aqueles que não nascem de uma relação visível, mas de uma invisível, são chamados de skótioi “escuros” e parthénioi “gerados fora do casamento”.(24) Este facto pode ajudar a compreender a importância das duas jovens raparigas que durante a cerimónia nocturna, levam a sua própria «ilegitimidade» até Afrodite, regressando depois com algo «legítimo» para Atena, preservando a sua virgindade, e entrando de forma legítima (i.e. luminosa, num novo amanhecer) numa nova etapa feminina.

Pelo facto de todos os símbolos estarem relacionados com a iniciação feminina na «vida adulta» e no «casamento», podemos concluir que este era um ritual que visava a fertilidade e a futura gravidez, representado pelo «orvalho» que desce do céu e pelo poder sexual (presentes em Eros e Afrodite) que levam ao nascimento (Erecteu).

 

Ricardo Louro Martins

Bibliografia:

 

(1) Cf. Bruit Zaidman, “Pandora’s Daughters and Rituals in Grecian Cities,” in Schmitt Pantel (ed), A History of Women in the West, I, Cambridge, Harvard University Press, 1992.

(2) Cf. N. Robertson, “The Riddle of the Arrhephoria at Athens”, Harvard Studies in Classical Philology, 87, 1983.

(3) R. Parker, “Potamon of Mytilene and his Family”, Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, 85, 1991, p. 129.

(4) Linda Roccos, “The Kanephoros and Her Festival Mantle in Greek Art”, American Journal of Archaelogy, 99/4, 1995, p. 642n.

(5)Joan Connelly, Portrait of a Priestess. Women and Ritual in Ancient Greece, New Jersey, Princeton University Press, 2007, p. 31n) Veja-se: F. Adrados, “Sobre las Arreforias o Arreforias”, Eremita 19, 1951.

(6)Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 442-443.

(7)Aristófanes, Lisístrata 641-647: «heptà mèn étē gegō̂s̱᾽ euthỳs ērrēphóroun: / eît᾽ aletrìs ē̂ dekétis oûsa tarchēgéti: / kā̂it᾽ échousa tòn krokōtòn árktos ē̂ Braurōníois: / kakanēphóroun pot᾽ oûsa paîs kalḕ ‘chous̱᾽ / ischádōn hormathón:»

(8)M. Walbank, “Artemis Bear-Leader”, Classical Quarterly 31/2, 1981, p. 276.

(9)Cf. Angelo Brelich, Paides e Parthenoi, I, Rome, Edizioni dell’Ateneo, 1969, pp. 230-279.

(10)Cf. Jan Bremmer, “Scapegoat Rituals in Ancient Greece”, Harvard Studies in Classical Philology, 87, 1983, p. 312.

(11)Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 442.

(12)Pausânias, 1, 27, 3: «hà dé moi thaumásai málista paréschen, ésti mèn ouk es hápantas gnṓrima, grápsō dè hoîa symbaínei. parthénoi dýo toû naoû tē̂s Poliádos oikoûsin ou pórrō, kaloûsi dè Athēnaîoi sphâs arrēphórous: haûtai chrónon mén tina díaitan échousi parà tē̂i theō̂i, paragenoménēs dè tē̂s heortē̂s drō̂sin en nyktì toiáde. anatheîsaí sphisin epì tàs kephalàs hà hē tē̂s Athēnâs hiéreia dídōsi phérein, oúte hē didoûsa hopoîón ti dídōsin eidyîa oúte taîs pheroúsais epistaménais—ésti dè períbolos en tē̂i pólei tē̂s kalouménēs en Kḗpois Aphrodítēs ou pórrō kaì di᾽ autoû káthodos hypógaios automátē—, taútēi katíasin hai parthénoi. kátō mèn dḕ tà pherómena leípousin, laboûsai dè állo ti komízousin enkekalymménon: kaì tàs mèn aphiâsin ḗdē tò enteûthen, hetéras dè es tḕn akrópolin parthénous ágousin ant᾽ autō̂n.»

(13)M. Walbank, “Artemis Bear-Leader”, Classical Quarterly 31/2, 1981, p. 278.

(14)Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 442.

(15)Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 503.

(16)Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 444.

(17)Cf. Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 443.

(18)Martin Nilsson, The Minoan: Mycenaean Religion and its survival in Greek Religion, Lund, 1950, 485-498; Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 115.

(19)Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 443.

(20)Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 284.

(21)Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 443.

(22)Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 443.

(23)Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 443.

(24)Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, pp. 20-21.

(25) Cf. M. Walbank, “Artemis Bear-Leader”, Classical Quarterly 31/2, 1981.

 

 

 

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