Autor
Jorge Ángel Livraga
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Jorge Ángel Livraga
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Há muitos anos assisti à projecção de uma super produção cinematográfica chamada “A queda do Império Romano”. Depois disso, voltei a vê-la várias vezes, atraído pela correta interpretação feita ao Imperador Marco Aurélio e à sua época; mas, a primeira impressão foi inapagável. Especialmente aquela loucura do Imperador Cómodo que, herdando todos os bens espirituais e materiais do Imperador-filósofo que acreditava ser seu pai, os esgota até morrer. E como o povo se contagia com a sua loucura e com as inúmeras máscaras, saindo à rua a dançar e a gritar que agora não há um César, mas milhares. Voam as moedas de ouro. Saqueiam-se os templos. O velho filósofo Timócrates observa com olhos esbugalhados, desde o canto do seu túmulo, esse espectáculo que pretende ser uma festa, o nascimento de uma mundo novo, mas que não passa de uma grande farsa no meio da qual morre uma forma de civilização e de entendimento, sem que quase ninguém se aperceba disso.
Por motivos de mercado, na filmagem à qual nos estamos a referir, Timócrates aparece como um cristão convertido, historicamente sabemos que era um estóico, um filósofo que assessorava Marco Aurélio da mesma maneira que o filósofo Séneca assessorou, enquanto pôde, o Imperador Nero. Na verdade, foram muitos os Imperadores, começando pelo primeiro, Octávio Augusto, que procuraram o conselho dos filósofos estóicos.
«A filosofia estóica divide as coisas entre aquelas que dependem de nós e aquelas que não dependem de nós.»
Devido ao seu peso histórico, nesse momento tão crucial para o Ocidente, é interessante ter uma ideia simples, mas firme, de quem eram estes estóicos e o que podemos extrair dos seus ensinamentos.
Aclaremos primeiramente que, segundo a nossa própria posição filosófica, os homens não inventam – rigorosamente falando – absolutamente nada: simplesmente descobrem, já que tudo está potencialmente na Natureza, na sua mecânica e, em Deus, na sua essência. O acto de inventar seria, desde o ponto de vista esotérico, uma forma de descoberta interior e a passagem desse descobrimento das trevas para a luz – como diria Parménides – para que se faça inteligível, visível e aplicável na prática.
Desta forma poderíamos descobrir uma “atitude estóica” em numerosos homens desde os tempos mais remotos. Mas, o que iremos referir em seguida é o “Estoicismo” ou doutrina desenvolvida pela Escola Estóica.
A fundação desta Escola de Filosofia deve-se a Zenão, filho de um mercador, que leu as obras dos filósofos socráticos e, grandemente atraído por estas disciplinas, ouviu cuidadosamente os ensinamentos dos Cínicos. Diógenes Laércio afirma que Zenão, sentindo repugnância por certos desvios intelectuais que caíram nos Cínicos, decidiu expressar os seus próprios pensamentos nas galerias do mercado, mais exactamente na porta ou “Estoa”; dai veio a denominação de “Estóicos”, assim conhecidos mais tarde.
Zenão nasceu no Chipre a 358 a.C. e faleceu em Atenas em muito avançada idade que se estima em 98 anos, apesar de um dos seus discípulos, Perseo, afirmar que só tinha 72. O seu pai Mnáseas ajudou, talvez inconscientemente, ao aparecimento deste fenómeno do estoicismo, pois graças às representações comerciais que outorgou ao seu filho em Atenas, o colocou em contacto com grandes pensadores do seculo IV a.C. O seu primeiro mestre foi Crates, discípulo directo de Diógenes. O primeiro livro de Zenão chamou-se “Política” talvez influenciado pelos seus seguintes Mestres da Academia.
Segundo o mesmo Diógenes Laércio, ficou 20 anos em reflexão antes de atrever-se a falar na famosa Porta, a noroeste da Agora, que estava pintada por Polignoto e tinha sido lugar de encontro dos Poetas. Zenão teve tanto êxito que poderosos reis da sua época, como Antígono e Ptolomeu Philadelpho, o reclamaram como assessor em assuntos de Estado, mas este recusou estas honrosas oportunidades. Apenas não pôde evitar que a cidade de Atenas, que o fez filho adoptivo, lhe oferecesse a coroa de ouro à sua já morta cabeça e uma sepultura triunfal no Cerâmio.
«Se cada um tirasse da vida apenas o que lhe pertence e ignorasse o que não depende dele, muitas situações angustiantes seriam facilmente superadas.»
Afirmam os seus historiadores que a virtude da sua entrega, o que seria chamado “estoicismo”, tem um duplo valor se considerarmos que, sendo jovem, ao instalar-se em Atenas, possuía uma fortuna pessoal de uns cinco milhões de dólares USA, no valor actual. E que esta fortuna, originalmente composta por carregamentos de púrpura e prata, as converteu totalmente na aquisição de livros que ficaram à disposição dos cidadãos de Atenas e em ajudas para que os mais jovens pudessem viajar desde países longínquos até ao então Coração do Pensamento, a bela capital que ainda nos impressiona com o seu Pártenon.
Infelizmente, dos seus numerosos escritos não ficaram mais do que os títulos recompilados nas bibliotecas romanas desaparecidas, podemos citar: “Da Ética de Crates”; “Da Vida Informe da Natureza”; “Da Natureza do Homem”; “Das Paixões”; “Do Conveniente” e numerosos estudos sobre as obras de Platão, como um, titulado “A Arte de Amar”, inspirado no “Banquete” que não sabemos até que ponto inspiraria de alguma forma a obra homónima de Ovídio Nasón escrita 300 anos mais tarde. Também teria realizado estudos sobre Homero e escrito poesias.
Personagem singular, desenvolveu uma Filosofia baseada na procura directa da Realidade, mas não numa Realidade apenas ôntica e metafisica, mas uma Realidade que se reflecte e habita em todas as coisas e que dá à luz a Força, o Movimento e a toda a Natureza. Deus era denominado como “A Alma do Mundo” e n´Ele estariam imanentes todas as coisas.
Para os estóicos o Homem é fundamentalmente um indivíduo que apenas amadurecendo se converte no verdadeiro Cidadão. Isto leva a entender o Homem, como a toda a Humanidade, mais além de todas as fronteiras e condições. O Homem dos estóicos é fundamentalmente livre, mas com uma liberdade Natural que não é amiga, mas inimiga das paixões escravizantes.
A filosofia estóica divide as coisas entre aquelas que dependem de nós e aquelas que não dependem de nós. As que dependem de nós podem ser as opiniões, os movimentos, as reacções, o valor, a dignidade, o desenvolvimento da inteligência e das virtudes, o exercício da vontade. As que não dependem de nós são os corpos, os bens, as dignidades, o entorno, a Natureza, o Destino. Os obstáculos sérios que encontramos na vida surgiriam, em grande parte, por não fazer uma real diferenciação entre as coisas e não conseguir resolver com justiça e justeza. Se cada um tirasse da vida apenas o que lhe pertence e ignorasse o que não depende dele, muitas situações angustiantes seriam facilmente superadas.
Dizia o famoso estóico Epicteto: “Apesar de ser coxo, esta falta constitui um obstáculo para o meu corpo, que não depende de mim, mas não para a minha vontade”.
«A “razão do sábio” é para o Estoicismo, o conciliar amavelmente e sem desplante a própria liberdade com a obediência à Lei Natural.»
A vontade livre e pura, de acordo com a Natureza, é para o Estoicismo o “princípio fecundo” de toda a Moral. Os estóicos insistem que a Moral não deve ser abstractamente intelectualizada, mas uma forma de vivência quotidiana. O sábio é aquele que pode compreender e marchar ao ritmo de “Aquilo que tudo produz”. Não nega a realidade do objecto, mas apoia-se nele para realizar o seu Ser. Se o sábio chega a este estado, deixa de ser “escravo” e converte-se em “livre”. Mas deve entender a “necessidade das coisas”; doutrina da “necessidade” da marcha do Universo que, por outro lado, sustém as Escolas de Mistérios da antiguidade e os verdadeiros esoteristas de todos os tempos. O Tempo marcha e submete-nos aos seus ciclos; mas o Tempo é necessário para a purificação e a consciência da própria imortalidade natural, sem obrigatoriedade de crer adquiri-la através da submissão de uma forma de Fé, Religião ou Seita.
A “razão do sábio” é para o Estoicismo, o conciliar amavelmente e sem desplante a própria liberdade com a obediência à Lei Natural. Sendo a razão património de todos os homens, apesar de expressa em diferentes graus de actualização, a Humanidade está formada por todos os homens e mulheres sem excepção. Por isso deve-se afastar todo o egoísmo e recomenda-se acções generosas que beneficiem a todos. A esse respeito dizia Cícero: “Charitas generis humani…Civis suum totius mundi”. Este pensamento recolhe o cosmopolitismo dos estóicos. Assim, as Normas Morais, deixariam de ser humanas para converter-se em universais; o Estoicismo recomenda referir-se sempre à “Obra inteira” e à Vida que une o Todo. Assim, a virtude é por si mesma, e não um mero meio para atingir as coisas, neste ou noutro mundo. (Este conceito está acima, obviamente, ao actualmente sustentado pelo capitalismo e marxismo).
O Estoicismo proclama algo que muito antes tinha sido escrito no Mahabharata hindu, no fragmento que é o seu coração; o Bhagavad Gita: a obra deve-se fazer correctamente, por ética e estética espiritual e não pela recompensa da nossa obra. É de “comerciantes” no pior sentido deste conceito, actuar de forma interessada.
Séneca, que foi um estóico, chega a “divinizar” a moral na sua versão da Ética Profunda e não a moral dos costumes mutáveis e assegura que se basta a si mesma para indiciar a Deus em nós mesmos e na Natureza; que nos faz resistir à necessidade das coisas exteriores e que nos leva à “apatia”, ou vitória sobre as perturbações da Alma, a Divina Serenidade, a Saúde Perpétua que não cessa com a morte.
Como consequência vemos que o Sábio deve controlar toda a forma de sensibilidade e ainda destrui-la quando já não faça falta, toda a paixão que turve a sua virtude.
O Estoicismo, pelo seu carácter prático e afastado da fantasia, pela sua dignidade e transparência, transcendeu não só a sua pátria grega para estender-se pelo Império Romano e formar, não poucos costumes dos primeiros cristãos contra a velha Lei Mosaica, como também a sua Teoria do Conhecimento alcança o próprio moderno Kant e ajuda todo aquele que a tão excelsa Filosofia recorre, especialmente nas horas mais amargas, naquelas em que uma loucura coletiva pode ameaçar todo o justo e o bom que as gerações passadas nos legaram.
Jorge A. Livraga Rizzi
Fundador da Nova Acrópole