versos todo em flor…
A seara dos teus beijos, pão bendito…
As almas das poetisas estão feitas de luz, como os astros: não ofuscam, iluminam…
Do Conto “A margem de um soneto” Ser poeta é ser mais alto, é ser maior É ter de mil desejos ou esplendor |
Este poema de Florbela Espanca (1894-1930) é uma canção muito popular na terra das flores e do amor que é Portugal. E como filha do seu céu, terra e mar, também a vida desta poetisa é governada pela Deusa do Trono de Rosas, mãe eterna do amor e da beleza: a Deusa a quem os Gregos deram o nome de Afrodite – nascida da espuma do mar – e a Vénus dos romanos. Estes últimos honraram-na, junto a Marte, como sua Alma Mater, até ao ponto que o grande juramento quebrado, a grande profanação foi o ser revelado o nome secreto de Roma, que era, precisamente, a leitura inversa deste mesmo nome, ou seja AMOR.
O povo português converteu em fados os versos desta poetisa, elevou-a, algo sem precedentes na história da sua literatura, à categoria de musa, tal como Platão fez com a divina Safo, de Lesbos. Ela, Florbela Espanca, é a Dama do Alentejo, e abandonados os seus restos mortais à terra que a viu crescer, é já não só inspiração de amantes, é companheira, é amiga de quem abre a sua alma aos ventos da vida, de quem sente as suas solidões e feridas, e ao mesmo tempo dama do reino que espera sempre mais além do exilio que este mundo é. O modo como os seus versos encarnam a profundidade e o mistério do Eterno Feminino, liberto de ataduras inúteis, brilhando como uma estrela no azul infinito; torna-se evidente para quem lê os seus sonetos, escritos como Nietzsche queria, com o sangue da sua alma e o mais puro da sua vida. Os homens sentem-se comovidos com tanta beleza, tanta que se adentra na terra ignota do sublime, onde os ventos já não são de prazer estético mas de um terror sagrado. É difícil encontrar aqui, nestes horizontes de Portugal, ou nos mais longínquos do Brasil, uma mulher que tenha lido os seus veros e não se tenha sentido identificada com o que ela diz, como se os seus poemas dessem, voz aos seus anseios e vivências mais íntimas, como se a mesma psique feminina fosse um iceberg que de desfaz e transfunde no oceano sem o infinito do seu amor.
Espera…Não me digas adeus, ó sombra amiga, Abranda mais o ritmo dos teus passos; Sente o perfume da paixão antiga, Dos nossos bons e cândidos abraços! Sou a dona dos místicos cansaços, Teu amor fez de mim um lago triste: Espera… espera… ó minha sombra amada… |
Florbela Espanca nasceu em 1894 em Vila Viçosa, perto da fronteira com Espanha, vila de descanso dos últimos reis de Portugal, muito enraizada nas suas tradições e folclore. Nasceu a 8 de Dezembro, dia da Imaculada, o mesmo dia em que se casou e morreu, o grau 16 de Sagitário que os astrólogos associam à imagem de quem penetra na obscuridade de uma caverna. Filha do que hoje chamaríamos uma “mãe de aluguer”, que na realidade era amante do seu pai, a sua vida foi uma sucessão de desgraças emocionais, que a sua extrema sensibilidade de poetisa convertia em vibrações letais para a sua Saúde. De caracter livre e independente, divorcia-se do seu primeiro marido, matricula-se na Universidade de Direito (foi a primeira mulher portuguesa a fazê-lo), volta a casar-se de novo duas vezes sucessivas (que escândalo em Portugal, naquele tempo!) e ainda busca a felicidade dourada, que sempre foge dela, com vários amantes…Mas sempre sem encontrar a plenitude que deseja, pois a sua entrega é total e frágil a resposta do amado.
O meu condão Quis Deus dar-me o condão de ser sensível Quis Deus fazer de ti a ambrosia Quis Deus fazer-me tua… para nada! Anda! Caminha! Aonde?… Mas por onde?… |
O seu pai, ainda que de família humilde, abriu caminho no mundo e deu-lhe uma boa educação, que ela amplificou sendo leitora infatigável em francês, português (a sua língua) e espanhol, devorando milhares de livros, sobre os quais depois muito cuidadosamente meditava. Demonstra assim uma maturidade de alma surpreendente, maturidade nascida também da dor de casar-se, sem amor, com apenas dezassete anos e ter que entrar na batalha da vida tão jovem. Com vinte e um anos escreveu o conto “Dádiva do Destino”, que expressa muito bem o mistério da sua alma, demasiado grande para ser vulgarmente feliz neste mundo.
Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve, deu-me uns sapatos e disse-me:
– Aqui tens estes sapatos de ferro, calça-os e caminha… Caminha sempre, sem descanso nem fadiga, vai sempre avante e não te detenhas, não pares nunca!… A estrada da vida tem trechos de céu e paisagens infernais; não te assuste a escuridão, nem te deslumbres com a claridade; nem um minuto sequer te detenhas à beira da estrada; deixa florir os malmequeres, deixa cantar os rouxinóis. Quer seja lisa, quer seja alcantilada a imensa estrada, caminha, caminha sempre! Não pares nunca! Um dia, os sapatos hão-de romper-se; deter-te-ás então. É que terás encontrado, enfim, os olhos perturbadores e profundos, a boca embriagante e fatal que há-de prender-te para todo o sempre!
Isto disse-me um dia o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve.
Calcei os sapatos e caminhei, O luar era profundo; às vezes, cantavam nas matas os rouxinóis… Outras vezes, ao sol ardente do meio-dia desabrochavam as rosas, vermelhas como beijos de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas como farrapos de seda, os perfumes delirantes de milhares de corolas! Outras vezes ainda, nem uma estrela no céu, nem um perfume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz de algum imenso abismo. Passei pelo reino do sonho, pelo país da esperança e do amor que, ao longe, banhado pelo sol, dá a impressão duma imensa esmeralda, e vi também as terras tristes da saudade, onde o luar chora noite e dia! Não me detive nem um só instante! O coração ficou-me a pedaços dispersos pelos caminhos que percorri, mas eu caminhei sempre, sem fraquejar um só momento!… Há muito tempo que ando, tenho quase cem anos já, os meus cabelos tomam-se da cor do linho, e o meu frágil corpo inclina-se suavemente para a terra, como uma fraca haste sacudida pela nortada. Começo a sentir-me cansada, os meus passos vão sendo vagarosos na estrada imensa da vida!
E os sapatos inda se não romperam!
Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó boca embriagante e fatal que há-de prender-me para todo o sempre?!…
O cansaço emocional dos seus fracassos amorosos, um atrás do outro, um estado febril e dores de estômago que a acompanharam nos seus últimos dez anos de vida, e sobretudo, a morte do seu irmão mais novo, Apeles, a aquém considerava como sua alma gémea, a que se realizava no mundo enquanto ela ficava prisioneira no seu “claustro de quimeras”, fez com que, já exausta, se decidisse a colocar fim á sua vida. E foi seu último desejo que cobrissem o seu sepulcro de flores, com as que no seu divino panteísmo se identificava. E não só pelo seu nome, o melhor nome para uma poetisa, Bela Flor, mas sim porque a sua vida foi a de uma flor que se abre e murcha desabrochando toda a sua beleza ante o beijo de um Sol ardente cada vez mais longínquo. Mas como diria Platão, quebra a lira que a todos nos deleitou com a sua música mas não o seu som; morre a flor que enfeitiçou, vestida de beleza, aos caminhantes, mas não o seu aroma. Assim, os versos de Florbela eram como o perfume da sua alma abrindo passagem no meio da sua vida. A mesma morte a quem nunca temeu é vista como sua amiga e libertadora. Poucos dias antes de morrer escreveu:
À Morte Morte, minha Senhora Dona Morte, Não há mal que não sare ou não conforte Dona Morte dos dedos de veludo, Vim da Moirama, sou filha de rei, |
No mesmo ano em que morreu iniciou um diário em que só ocasionalmente fazia algumas anotações. Num dos seus escritos faz um retrato moral de si mesma, olha-se ao espelho da sua consciência e diz honestamente, o que vê:
Uma corajosa rapariga, sempre sincera consigo (…). Honesta sem preconceitos, amorosa sem luxuria, casta sem formalidades, recta sem princípios, e sempre viva, exaltantemente viva, a palpitante de seiva quente como as flores selvagens da tua bárbara charneca.
É triste que uma biografia infame escrita por Agustina Bessa-Luís e um prefácio ácido e corrosivo dos seus contos, de Natália Correia, tenham contribuído para que o mundo académico português lhe tenha prestado tão pouca atenção a esta amada das musas, a quem a vox populi proclama a melhor poetisa portuguesa. Um original dactilografado encontrado no seu famoso baú de Fernando Pessoa, o poeta da língua portuguesa mais conhecido no mundo (ainda mais que o próprio Camões), revela a admiração do autor de Mensagem por Florbela. Este, ainda que ao que parece nunca ter conhecido a poetisa do amor, declara-a a sua “alma gémea”, intimidade de ânimos que o poeta-astrólogo não atribui a mais ninguém, nem sequer, que eu saiba, ao seu amigo, Mário Sá Carneiro. Agora vejamos, em relação a que este poema seja ou não de Fernando Pessoa, os especialistas neste autor guardam o mais vergonhoso silêncio, fazer de outro modo seria elevar em dignidade a poetisa que todo o Portugal adora!
O original tem o título ”Em memória de Florbela Espanca”Dorme, dorme, alma sonhadora, Irmã gémea da minha! Tua alma, assim como a minha, Rasgando as nuvens pairava Por cima dos outros, À procura de mundos novos, Mais belos, mais perfeitos, mais felizes. Criatura estranha, espírito irrequieto, Dorme, dorme, alma sonhadora, |
Florbela Espanca publicou na sua vida apenas dois livros de poemas: Livro de Magoas e Livro de Soror Saudade, que em breve se esgotaram, mas não foram reeditados; e um de contos, dedicado ao seu irmão aviador, Máscaras do Destino. Deixou preparada a edição de outro, o seu melhor livro, Charneca em Flor, que saiu à luz postumamente, junto com Relíquia: uma colecção de poemas manuscritos que por revelar as suas intimidades amorosas, nunca tinham sido editados. Só muitos anos mais tarde, e graças a um trabalho infatigável de Rui Guedes, o público pode ler outro livro de contos, Dominó Preto, e muitos poemas mais…Mas mais importante ainda, editou as cartas que pode compilar, verdadeiras joias de sinceridade e poesia, e as poucas páginas do seu Diário. Há poucos anos foram recuperadas as cartas de amor do seu segundo marido, António Guimarães, fundamentais para entender a alma da nossa poetisa. No meio da avalanche de críticas que quase sepultou o nome de Florbela, críticas do Estado Novo, por não ser, segundo eles, um exemplo suficiente de moral e mãe de família, e da Igreja, pelo mesmo e por se ter suicidado, quem evitou que a nevoa do esquecimento nos separassem dela para sempre, e quem sempre a defendeu, foi a sua única discípula – viva no momento em que escrevo estas páginas-, Aurélia Borges, também poetisa. Lúcia dal Farra, catedrática brasileira, colocou um pouco de ordem no caos das sucessivas edições das suas obras (existiam várias versões dos mesmos poemas) e dos seus cadernos manuscritos: Livro d’Ele, Trocando Olhares e outros, que eram onde Florbela extraia os poemas que queria editar.
Versos de orgulho
O mundo quer-me mal porque ninguém Porque o meu Reino fica para Além… O mundo! O que é o mundo, ó meu Amor?! Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços… |
Em Espanha, hoje mesmo, Florbela é quase uma desconhecida. Que semelhantes são os seus versos com os de Alfonsina Storni ou inclusivamente, ainda que esta seja um pouco anterior, à musa galega Rosalía de Castro, em que a doçura dos seus versos se irmana com a doçura da sua língua. Mas o mesmo esvoaçar da vida, sempre imarcescível, quer que retornemos à beleza, mais além das letras de lodo e duelo, estridências e caos que povoam o ar que respiramos, também nos encontraremos com Florbela, amiga dos nossos horizontes, que são os mesmos que os de Portugal.
José Carlos Fernández
Abril 2012
In Revista Esfinge