“Deve recordar mais a minha alma que agora a minha memória que guarda desse encontro apenas algumas difusas imagens — disse sorrindo Hipátia.”

— Mudando de tema, Hipátia — disse Theon — tu deves recordar o grande Antonino, o filósofo mago, sacerdote do Templo de Serápis em Cánope que, ainda eras tu criança, fomos uma vez visitá-lo. Talvez recordes ainda que vagamente as inspiradíssimas respostas que deu às perguntas que lhe fizemos sobre as doutrinas platónicas.
— Deve recordar mais a minha alma que agora a minha memória que guarda desse encontro apenas algumas difusas imagens — disse sorrindo Hipátia.
— E bem sabes — continuou Theon — que há pouco menos de um ano Antonino morreu tranquilamente no seu leito. Antes de abandonar esta terra mencionou sucessivas vezes, tal como uma profecia ou como se fosse um oráculo, o que aconteceria depois da sua morte. Ouviste algo sobre isso, Hipátia?
— Sim, claro — respondeu. Desde há meses que se estendeu pela cidade de Alexandria um rumor que não sei se tem algum fundamento objectivo. Vários dos meus discípulos ouviram-no e questionaram-me, mais curiosos que assustados. O rumor anunciava que depois da sua morte seriam destruídos o Templo de Serápis e todos os outros templos de Alexandria; que as sombras cobririam a terra e que a própria alegria que a vida dá, ainda que tragicómica, seria coberta por sombras, profunda tristeza e dor. O rumor acrescentava que este será o fim do mundo tal e qual como o conhecemos — enfatizou Hipátia. — Talvez o final dos tempos que os cristãos anunciam se refira, na verdade, e ainda que eles acreditem num fim definitivo e a vinda de Deus ao mundo, ao final de um modo de vida e de uma forma de pensar cujo último expoente seja a civilização romana. Para lá dos rumores e temores fanáticos nós, os Iniciados, sabemos que isto assim será: o ciclo astrológico de Peixes começou já há mais de quatrocentos anos, coincidindo com a data real da vida e ensinamentos do Mestre Jesshua, e chegou já a um ponto em que começa a dissolver todas as formas gastas e caducas.
— Hipátia, o rumor é certo. Eu mesmo ouvi esta profecia dos lábios de Antonino e conhecendo a sua sabedoria divina, que nunca errou no que disse e predisse… — disse Theon com pesar. — O rumor, como sempre, deformou um pouco as palavras de Antonino. O que ele sim disse é que o templo em que ele ensinava – e todos os grandes e santos templos de Serápis – iriam cair numa informe obscuridade e haveriam de ser transformados; e que uma fabulosa e indigna obscuridade se ergueria com a tirania sobre as coisas mais belas da terra. Disse também que os templos seriam convertidos em túmulos e que neles, em vez de aos Deuses, se prestaria culto aos ossos nem só de santos mas também, muitas vezes, de escravos desonestos e de criminosos convertidos em «mártires» ou testemunhas da sua fé. Ena! — disse Theon amargamente — estes são os deuses que produz a terra!
— O filósofo Antonino — continuou o pai de Hipátia — era filho de Sosípatra e Eustácio, ambos personagens quase divinos e, sem dúvida, Iniciados nos maiores Mistérios segundo se deduz do que narram os seus discípulos e dos ensinamentos que nos deixaram nos seus livros. Eustácio foi o Mestre que ensinou na Escola neoplatónica de Éfeso, regida anteriormente por Edésio, discípulo de Jâmblico. Um sonho e um augúrio fizeram com que Edésio se consagrasse à vida solitária para alcançar a perfeição junto dos Imortais… até que os discípulos o procuraram, reconheceram e insistiram para que voltasse a ensiná-los; e tornou a estabelecer-se mas agora em Pérgamo. Eustácio participou numa embaixada ao imperador persa Sapor e foi tal a sua eloquência filosófica que o imperador esteve a ponto de abandonar a tiara e púrpura e vestir-se com o manto de filósofo, tornando-se seu discípulo… caso não fossem os sacerdotes zoroastrianos, os magos, que, invejosos da influência helénica de Eustácio, envenenaram a mente de Sapor.
Theon continuava a explicar:

“Hipátia pensou quantas vezes em criança e adolescente tinha sido comparada – então não sabia porquê – com esta filósofa e chamada «a nova Sosípatra».”

— Dele, Eustácio, escreveu-se de um modo muito fiel à verdade: «Todos estão de acordo em que ele não só se deixou ver como um homem da máxima nobreza de carácter mas também com o máximo talento da eloquência quando era posto à prova, ao mesmo tempo que o encanto que punha na sua língua e nos seus lábios parecia ser nada menos que encantamento. A sua suavidade e afabilidade floresciam tanto no que ele dizia e nas palavras que dele fluíam que os que ouviam a sua voz e as suas alocuções se entregavam como homens que tivessem provado o loto e ficassem dependentes desta voz e dessas palavras. A tal ponto se assemelhava às musicais sereias, que o imperador (…) mandou procurá-lo ao sentir-se alarmado pelo estado das coisas, e além disso porque se via muito pressionado pelo perigo que o ameaçava por parte do rei da Pérsia»Sosípatra foi discípula dos Deuses ou dos já Sábios Imortais e a narração de como foi Iniciada foi escrita por um filósofo de Sardes. Se quiseres podemos ler juntos e comentar – conclui Theon.
— Ficarei muito feliz querido pai…
E enquanto dizia isto Hipátia pensou quantas vezes em criança e adolescente tinha sido comparada – então não sabia porquê – com esta filósofa e chamada «a nova Sosípatra». Esta recordação, mergulhada nas trevas da sua memória, emergiu ao mencionar de novo o seu nome e fez com que aumentasse o desejo de ler o texto que o seu pai tinha junto a si e que dizia: «(…) ela nasceu na Ásia, próximo de Éfeso, na comarca atravessada e percorrida pelo rio Caystros que dá o nome a toda a planície. Ela procedia de uma família abastada, abençoada pela riqueza e, quando era ainda uma criança pequena, parecia levar uma bênção a tudo: tais eram a beleza e decoro que iluminavam os seus olhos infantis.
Ora bem, ela tinha alcançado exactamente a idade de cinco anos quando dois anciãos – ambos já tinham passado a idade madura da vida, mas um era um pouco mais velho que o outro – levando amplos surrões e cobertos com roupas de peles, dirigiram-se a uma quinta pertencente aos pais de Sosípatra e convenceram o administrador ou mordomo, pois eram capazes de o fazer com facilidade, de que lhes confiasse o cuidado das vinhas. Quando o resultado foi uma colheita que superava todas as expectativas – o próprio proprietário estava presente e com ele a pequena Sosípatra – o espanto dos homens não tinha limites e chegaram a suspeitar até da intervenção dos deuses. O proprietário da quinta convidou-os para a sua mesa e tratou-os com a máxima consideração; e repreendeu os outros trabalhadores da quinta por não conseguirem os mesmos resultados. Os anciãos, ao receberem a hospitalidade grega e um lugar numa mesa grega, sentiram-se encantados e cativados pela beleza realçada e o encanto da pequena Sosípatra e disseram:
– Os outros poderes ou faculdades que possuímos guardamo-los ocultos e secretos para nós e esta abundante vindima que tu tão exaltadamente aprovas é algo risível e simples jogo de crianças que nada tem a ver com as nossas habilidades sobre-humanas. Mas, se desejas de nós uma adequada retribuição por este convite e hospitalidade, não em dinheiro ou benefícios perecíveis e corruptíveis, mas sim muito superior a ti e ao teu modo de vida, um dom cuja fama chegará até aos céus e tocará as estrelas, entrega-nos esta criança, Sosípatra, que somos mais verdadeiramente seus pais e tutores, e até daqui a cinco anos não temas nenhuma doença para a pequena, nem a morte, antes fica tranquilo e confiado. Mas tem cuidado em não voltar a esta terra até que o quinto ano chegue com as revoluções anuais do sol. E por própria iniciativa brotará e florescerá para ti a riqueza deste solo. Além disso, a tua filha terá uma mente nada semelhante à de outra mulher nem a de um simples ser humano, e também tu próprio terás pensamentos mais elevados que os mortais relativamente à menina. Assim, pois, se tens valor e bom ânimo, aceita as nossas palavras com as mãos estendidas; mas se alguma suspeita aparece na tua mente considera que nada dissemos.
Ao ouvir isto o pai mordeu a língua e, humilde e aterrado, agarrou a menina com as suas mãos e entregou-a a eles. Depois chamou o administrador e disse-lhe:
— Fornece aos anciãos tudo o que necessitem e não faças qualquer pergunta.
Assim falou e antes de que a luz da madrugada começasse a aparecer partiu, como se fugisse da sua filha e da sua quinta.
Depois esses outros – quer fossem heróis ou daimons ou de alguma raça ainda mais divina – tomaram a seu cargo a menina e ninguém sabe em que mistérios a iniciaram, nem se revelou sequer àqueles que mais empenho tinham em saber a que rito religioso tinham consagrado a criança.
Aproximava-se já o tempo marcado em que se deviam prestar todas as contas das rendas da quinta. O pai da menina chegou à propriedade e dificilmente reconheceu a sua filha: tão alta era, e a sua beleza pareceu-lhe que tinha mudado de carácter; e também ela dificilmente reconheceu o seu pai. Ele, inclusive, saudou-a respeitosamente tão diferente ela aparecia aos seus olhos. Com os seus mestres presentes e a mesa posta, eles disseram:
— Pergunta à rapariga tudo o que te aprouver.
Mas ela interveio:
— Não pai, pergunta-me o que te ocorreu na tua viagem.

E à medida que foi crescendo até à plenitude
do seu vigor juvenil não teve outros mestres,
mas sempre estiveram nos seus lábios
as obras dos poetas, filósofos e oradores.

E ele concordou com que ela falasse sobre isso. Ora, como ele era tão rico teria feito a viagem numa carruagem de quatro rodas, e com este género de carruagem podem ocorrer muitos acidentes. Pois ela referiu todos e cada um dos acontecimentos, não somente o que se tinha dito mas também as suas próprias ameaças e temores, como se ela fizesse a viagem com ele. O seu pai sentiu-se elevado a um grau de tal admiração que não somente se sentia surpreendido com ela mas também ficou mudo de espanto e ficou convencido de que a sua filha era uma deusa. Então ajoelhou-se diante daqueles homens e suplicou-lhes que lhe dissessem quem eram. Lentamente, e resistindo a isso porque talvez fosse a vontade dos céus, eles revelaram-lhe que estavam iniciados na sabedoria dos caldeus, e mesmo isto disseram-no enigmaticamente e com as cabeças inclinadas. E quando o pai de Sosípatra se prostrou de joelhos e lhes implorou a que ficassem com a propriedade e conservassem a sua filha sob a sua influência e a iniciassem nas coisas ainda mais sagradas, eles concordaram nisto com uma inclinação da cabeça, mas não falaram nem uma palavra mais. Então ele agradeceu como se tivesse recebido alguma promessa sagrada ou algum oráculo mas que não pudesse captar o seu significado. No seu coração aplaudiu Homero por cima de todos os poetas por ter cantado uma revelação semelhante a esta, tão maravilhosa e divina:
“E deuses semelhantes a estrangeiros, procedentes de outras terras, vestindo-se de vários tipos de figuras, e andaram errantes pelas cidades”.
Na verdade ele acreditava que tinha encontrado deuses sob a forma de estrangeiros. Enquanto o seu espírito estava cheio deste pensamento foi dominado pelo sono; os outros levaram a menina, depois de deixar a mesa, e muito terna e escrupulosamente entregaram-lhe toda a colecção de vestes sagradas em que ela tinha sido iniciada, e acrescentaram-lhe certos símbolos místicos; e puseram também alguns livros na cesta de Sosípatra ordenando-lhe que os conservasse selados. E ela, não menos que seu pai, teve imenso prazer no trato com estes homens.
Quando o dia começou a romper e as portas se abriram e as pessoas começaram a dirigir-se aos seus trabalhos, estes homens também, e segundo o seu costume, saíram com os demais. Então a criança correu para o seu pai levando as boas notícias, e um dos escravos ajudou-a levando a cesta. O seu pai pediu todo o dinheiro que lhe pertencia e que pudesse estar disponível, e pediu aos seus administradores tudo o que tivessem para os necessários gastos. E mandou chamar aqueles homens mas não os encontraram em lado algum. Então ele disse a Sosípatra:
— Qual é o significado disto, minha filha?
Depois de uma breve pausa ela respondeu:
— Agora, finalmente, compreendo o que eles diziam. Pois quando eles choravam e punham estas coisas nas minhas mãos diziam: “Criança, cuida delas pois nós estamos de viagem para o Oceano Poente, mas depois voltaremos”.
Isto demonstrou muito claramente que quem tinha aparecido eram espíritos ou daimons. Eles, pois, partiram e foram para qualquer lado; mas o pai encarregou-se da menina, agora plenamente iniciada e, ainda que sem presunção ou vaidade, cheia de espírito divino, e permitiu que ela vivesse como lhe aprouvera e não se intrometeu em nenhuma das suas coisas, aparte de algumas vezes se sentir perturbado com o seu silêncio. E à medida que foi crescendo até à plenitude do seu vigor juvenil não teve outros mestres, mas sempre estiveram nos seus lábios as obras dos poetas, filósofos e oradores. E aquelas obras que os outros não compreendem mais do que de maneira incompleta e obscuramente, e então ainda somente por meio de um trabalho duro e um labor penoso, ela podia explicá-las com uma descuidada facilidade, serenamente e sem dificuldade, e com o seu ligeiro e rápido toque tornava evidente o seu significado (…)».

Excerto do livro “Viagem Iniciática de Hipátia”, de José Carlos Fernández
Director Nacional da Nova Acrópole