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A ideia com que muitos de nós entramos em contacto com os mitos pela primeira vez, pode ter sido no sentido de fábula ou história fantástica, carregada de grande beleza e cuja trama nos atraía poderosamente. Os seus heróis, as aventuras por que passavam, as dificuldades que tinham que superar, os sacrifícios que o destino lhes impunha, tudo surgia tão belo e tão, de alguma maneira, real, que não era estranho identificarmo-nos com eles e acompanha-los nas suas vicissitudes, mesmo que fosse na nossa imaginação.
Tinham-nos feito acreditar no entanto que não passavam de ficções ou invenções pré-cristãs, já que o cristianismo relegou ao plano da mentira ou da ilusão tudo aquilo que não estivesse justificado pelo Antigo ou o Novo Testamento. Atitude que imperou no Ocidente até ao século XIX, enquanto no século XX começou uma aproximação por parte dos especialistas à forma como os mitos eram entendidos nas sociedades arcaicas. Ou seja, como “histórias verdadeiras” de um valor precioso, já que eram ao mesmo tempo sagradas, exemplificativas e cheias de significado.
Mas não é assim em geral que são entendidos no Ocidente apensar desta aproximação. A ficção ou ilusão continuam a ser os termos preferidos de aproximação. Ainda para os especialistas, ou talvez mais ainda para eles. É importante ter e dar uma imagem de seriedade, os mitos portanto não merecem uma análise séria já que falam de coisas que não o são.
«(…)O Mito não necessita de uma precisão cronológica porque transcende as limitações do tempo e do espaço, a sua magia não está nas cifras que porta, salvo como sísimbolos, mas sim na vida que transmite.(…)»
O estudo das características do homem que se guia pelos mitos, ou seja o homem arcaico, está feita pelos especialistas com base em tribos relativamente próximas no tempo ou nossas contemporâneas. Estima-se portanto que estas características coincidirão no fundamental com as do homem das culturas da antiguidade.
O homem arcaico
O homem das sociedades arcaicas considera-se ele próprio o resultado de um certo número de acontecimentos míticos. Os mitos relatam-lhe não só a origem do mundo, dos animais, das plantas, mas a sua própria: transmitem-lhe os acontecimentos primordiais segundo os quais o homem se transformou no que é. Ou seja, um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver e trabalhando segundo regras determinadas.
Se o mundo existe e se o homem existe, foi pela actividade criadora dos Seres Sobrenaturais nas origens. O homem é o resultado directo de acontecimentos míticos e está constituído por esses acontecimentos. A sua própria mortalidade deve-se a algo ocorrido em determinado momento no “illo tempore” que o fez perder a sua condição de imortalidade. Esses tempos míticos constituem a sua história sagrada, em que os personagens não são simples seres humanos mas Seres Sobrenaturais.
«(…)O homem das sociedades arcaicas considera-se ele próprio o resultado de um certo número de acontecimentos míticos. Os mitos relatam-lhe não só a origem do mundo, dos animais, das plantas, mas a sua própria: transmitem-lhe os acontecimentos primordiais segundo os quais o homem se transformou no que é.(…)»
É importante assinalar que o homem das sociedades arcaicas não só está obrigado a recordar a sua história mítica, mas que além disso deve reactualizar periodicamente partes da mesma por meio do rito.
As fábulas ou contos não vão ter a mesma importância para ele, já que se ocupam de acontecimentos que introduziram modificações na natureza ou nos animais, contudo não na condição humana e este é o terreno dos mitos. Algumas tribos do norte da América distinguem-nas chamando-as histórias “verdadeiras” e histórias “falsas”, o que claramente indica o grau de importância que lhes outorgam.
O homem moderno
Enquanto o homem das sociedades arcaicas se considera o resultado de acontecimentos míticos, o homem moderno considera-se ele próprio o resultado da história. Ou seja, são acontecimentos históricos os que forjaram o que é. A História Universal com os seus factos irreversíveis produziu o homem moderno, porém este não se sente na necessidade de a conhecer na sua totalidade ou recordá-la, nem muito menos reactualizá-la periodicamente como o homem arcaico.
O homem moderno recorda datas significativas para ele, como podem ser aniversários pátrios, ou seja comemora-as, todavia não reactualiza o acontecimento histórico propriamente dito.
«(…)O homem moderno considera-se digno herdeiro da tradição helénica e prefere a via da razão e por extensão da exactidão histórica antes da do mito. É importante recordar, deste modo, que o espírito grego clássico não considerava que a história pudesse chegar a ser objecto de conhecimento.(…)»
Não compreende portanto, que para o homem das sociedades arcaicas é perfeitamente possível repetir o que sucedeu nas origens por meio dos ritos e que, sem lugar a dúvidas, é-lhe essencial conhecer os mitos. Não só porque lhe explicam o mundo e a sua própria maneira de nele estar, mas porque ao recordar reactualiza-os e sente-se capaz de repetir o que os Deuses, os Heróis e os seus antepassados fizeram nas origens. Conhecer os mitos é para ele aprender o segredo da origem das coisas, de como estas chegaram à existência, mas também como encontra-las e como fazê-las ressurgir quando desaparecem.
O homem moderno considera-se digno herdeiro da tradição helénica e prefere a via da razão e por extensão da exactidão histórica antes da do mito. É importante recordar, deste modo, que o espírito grego clássico não considerava que a história pudesse chegar a ser objecto de conhecimento. Os historiadores da antiguidade narram acontecimentos vividos como experiência prática, ou seja o presente político do autor, ao contrário de um historiador moderno em que as obras-primas históricas se referem a um passado remoto no que respeita ao seu autor. Tucídides chega a afirmar por exemplo no início da sua obra, que antes do seu tempo não aconteceu nada de importante. Isto não quer dizer que não tivesse ocorrido nada, mas que o terreno do passado remoto estava coberto pela tradição e pelo mito e que o que ia narrar eram acontecimentos perfeitamente humanos em que a intervenção divina não tinha o protagonismo dos tempos primordiais.
É preciso recordar que o génio filósofo grego aceitava o essencial do pensamento mítico, o eterno retorno das coisas e a visão cíclica da vida cósmica e humana. O pensamento filosófico utilizava e prolongava a visão mítica da realidade cósmica e da existência humana.
As modernas historiografías ao contrário, deram ênfase aos elementos materiais e quotidianos da história humana. Isto dá lugar a leituras muito diferentes, quando não francamente opostas de um mesmo facto histórico, que não tem que ser contemporâneo como já vimos mas muito distante no tempo, contudo ainda sujeito às veleidades interpretativas do homem moderno.
A história encarrega-se de fixar no tempo e no espaço os acontecimentos com o fim de os poder estudar, o que em si não tem nada de mal, mas ao fazê-lo disseca-os e classifica-os, tornando-os, por assim dizer, peças de museu carentes de vida.
Ainda quando um facto histórico se torna um modelo a seguir, como é o caso de gestas patrióticas, a recordação é mecânica, com discursos, oferendas de flores e talvez até desfiles, todavia o seu valor é cosmético no que se relaciona com o poder de um mito recordado e repetido de maneira ritual. Neste último há um elemento vital e mágico que o facto histórico não tem e não compreende porque escapa do seu horizonte limitado.
A história deve ser exemplificadora, dar-nos grandes lições que nos permitam não repetir erros porque tomamos consciência dos mesmos. Porém já vemos que a tendência é relê-la pelo seu mínimo denominador comum, partindo da premissa de que as imperfeições humanas são o ponto de partida. Assim, não somente estará a anos-luz do valor dos Mitos, mas tampouco cumprirá a sua própria função de nos oferecer exemplos a seguir.
O Mito não necessita de uma precisão cronológica porque transcende as limitações do tempo e do espaço, a sua magia não está nas cifras que porta, salvo como símbolos, mas sim na vida que transmite. Vida que se renova ritualmente, recordando-nos que estamos aqui para algo e que respondemos a essa razão ultérrima que não só anima mas dá sentido à nossa existência.
Alfredo Aguilar