O Caminho da Felicidade

Categories: Artigos, Filosofia

Autor

Nova Acrópole

Partilhar

Categories: Artigos, Filosofia

Autor

Nova Acrópole

Partilhar

A finalidade de Sócrates: a felicidade

A finalidade de Sócrates não é a sabedoria por si própria mas a felicidade interior ou eudaimonia. É o «tesouro» de Sócrates, graças ao qual ele suportou até ao fim a adversidade e apesar da pressão do ambiente, livre de qualquer excesso, numa atitude de perfeito equilíbrio.

A felicidade – eudaimonia – é para Sócrates o bem último e incondicional. «É o único bem que ‘procuramos’ ou desejamos por si próprio e é, por conseguinte, o fim – télos – de todas as nos­sas acções» (1). Não existe nada mais caro para cada um de nós. Por trás de todas as motivações do que fazemos, procuramos a felicidade. É a finalidade última. Todo as questões cessam quando a encontramos.

«De alguém que quer ser feliz, já não há necessidade de perguntar: ‘Por que razões quer ele ser feliz?’ Já temos a resposta final.» (2). Dizer que a felicidade é o fim de todas as nossas acções não significa que pensamos na felicidade em todos os nos­sos actos quotidianos, quer sim dizer que é a última razão que poderemos fornecer se nos pedissem para justificar a nossa escolha por alguma acção. Por outras palavras, é a única razão que, uma vez dada, privaria de sentido qualquer outra questão suplementar.

O termo utilizado por Sócrates é eudaimonia que traduzimos geralmente por felicidade, mas não se trata de qualquer felicidade. A eudaimonia na qual encontramos o termo daimon, «permite esperar os mais altos registos de intensidade, ao mesmo nível que makar, makarios (que indica a capacidade de aceder à visão do que é santo)… evocando uma felicidade tão maravilhosa que os próprios deuses não conseguiriam pedir nada melhor para eles próprios e que inversamente não lhes poderíamos pedir maior dádiva»(3). A eudaimonia é um estado in­te­rior que nos permite compartilhar o mundo dos deuses.

O homem em estado de eudaimonia está em relação com o seu mistério: a eudaimonia põe fim a qualquer confusão e questionamento, o indivíduo está em estado de clareza e a sua verdadeira identidade, até ali ocultada, revela-se na sua plenitude.

A felicidade basta-se a ela própria. Põe um fim à interrogação dialéctica e a qualquer caminho da razão. Porque se passa então para um outro plano que não advém do raciocínio. A felicidade marca com efeito um limiar entre dois mun­dos: o dos mortais, «infelizes» por natureza, e o dos deuses, felizes por natureza. Nos Gregos, este limiar é simbolizado pelo monte Hélicon, cujo topo marca a fronteira entre a terra e o céu e onde residem as Musas. A ascensão do Helicon faz-se num movimento em espiral cujo diâmetro reduz à medida que nos aproximamos do topo. Esta ascensão ilustra o procedimento dialéctico que permite, pela exaustão progressiva das questões, chegar à síntese e à unidade. A prática das artes e das ciências através de obras inspiradas pelas Musas por aquele que, alcançado o topo, integrou uma lei da natureza (um aspecto do divino), é a expressão da felicidade que se satisfaz aí mesmo.

Por que razão tantas pessoas não alcançam a felicidade? Por excesso de raciocínio crítico. Em vez de se elevarem, caem na armadilha do raciocínio sem fim, que se traduz pelas queixas, interrogações, tergivações.

Como não os passam pelo crivo da dialéctica, não conseguem esgotar as fontes da razão e afogam-se na ruminação do mental analítico entregue a si próprio. Esta clausura vem de uma identificação excessiva com o ego pessoal ou com o pequeno eu que tem necessidade de se tranquilizar, de se justificar e de ter razão a todo o preço. Longe de se aproximar da felicidade, o esforço titânico que isso exige afasta-o ainda mais.

Porque a felicidade é por definição abertura universal.

A felicidade surge quando a razão, tendo terminado o seu caminho, se silencia.

Com efeito é quando surge como uma evidência irrefutável a complementaridade de dois elementos captados anteriormente como contraditórios que brota a felicidade. É contemporânea da visão de globalidade assim apreendida e da adesão a esta globalidade.

Assim a luz e a obscuridade, o repouso e a actividade quando apercebidos na sua complementaridade, unem-se naquele que a integrou, para ritmar uma existência que, sem essa integração é difícil de viver. De facto, vivê-los como opostos, é recusar um deles, seja em permanência ou alternativamente. Esta recusa engendra inelutavelmente disfuncionalidade e infelicidade, como constatamos frequentemente em nós e à nossa volta.

“A felicidade é indissociável da união consigo, com o outro, com o que nos rodeia.”

Estabelece em nós a sua morada quando o funcionamento por oposição e exclusão desaparecer para dar lugar ao funcionamento por complementaridade e inclusão.

Mas não existe felicidade sem exigência, indispensável para mudar de plano, de nível de consciência. Esta exigência para Sócrates é o procedimento dialéctico que permite o confronto com a realidade e o desapego em relação aos seus estados de alma.

O Ser: o sistema de valores de Sócrates

Não podemos compreender o procedimento de Sócrates nem o seu método se não nos interessarmos pelo sistema de valores que o subentende.

Com efeito, como demonstrou Grégory Vlastos (4), Sócrates age segundo um sistema de valores precisos. Para ele existem quatro tipos de bens.

– O bem último é a felicidade.

– O bem constitutivo da felicidade é a virtude.

Estas duas categorias de bens superiores, o bem último que é a felicidade e os bens morais que são as virtudes, encontram a sua fonte na vida interior, no ser. Não são condicionados por nada de exterior.

– Os bens secundários, como a saúde, a riqueza, etc., dependem das circunstâncias e condições exteriores. Dão relevância ao ter. Não têm nada de moral – Sócrates chama-lhes bens não morais – mas podem contribuir para a nossa felicidade, se os utilizarmos com sabedoria.

Saúde, riqueza, etc., são bons e desejáveis mas não podem, segundo Sócrates, pôr em causa fundamentalmente a felicidade interior que é independente deles sem os excluir.

Não podemos procurá-los a preço da virtude. «Mas são contudo bens; seremos mais felizes com eles do que sem eles, mas apenas se os utilizarmos correctamente, pois não são ‘bons unicamente por si próprios’. Se estão separados da sabedoria, acabaram por se tornar amargos para nós e estaremos numa situação menos boa do que estaríamos sem eles.»(5) São aqueles que Sócrates chama bens subordinados ou condicionais.

– Por fim, os bens acessórios que chamaríamos hoje os bens de consumo (casa, carro, computador, etc.), não são nem bons nem maus, porque o seu valor é puramente instrumental. Apenas têm interesse relativamente aos serviços que podem prestar. Não contribuem para uma felicidade durável porque são perecíveis e podem ser-nos tirados. Não podemos ser verdadeiramente felizes se submetermos a nossa felicidade a possessões ou condições exteriores que dão relevância à aparência, ao ter e não ao ser.

Com efeito, a verdadeira felicidade não se perde.

É por isso que não pode ser condicionada pelo ter porque na realidade apenas nos possuímos a nós próprios. Sócrates insiste na necessidade de se dominar, ou seja de estar na possessão de si próprio, única ‘possessão’ que pode conduzir à felicidade.

Sócrates «não diz que os bens não morais de que falou (dinheiro, reputação, prestígio) não têm qualquer valor mas que o seu valor é largamente inferior ao bem mais precioso da vida, ou seja a perfeição da alma… Ele explica porque é que esta perfeição deve ocupar um lugar tão proeminente na nossa escala de valores: ela é o que transforma em bens todas as outras coisas; sem ela, nada seria um bem» (6).

A possessão de bens não morais aumenta a nossa felicidade se, e unicamente se, possuirmos a sabedoria para guiar correctamente a utilização que deles fizermos. Nenhum bem não moral é bom por si próprio. Pode vir a tornar-se um bem se a sua utilização se submeter à sabedoria através da prática da filosofia.

A condição da felicidade: a virtude

No procedimento socrático, a virtude não é um simples meio para atingir a felicidade. Em geral, uma vez atingida a finalidade, os meios utilizados para a conseguir, tendo cumprido a sua função, são abandonados. Ao contrário, no que diz respeito à virtude, distinguindo-a da felicidade, Sócrates recorda-nos que é constitutiva. Em consequência, são indissociáveis e alimentam-se mutuamente em permanência.

«O bem supremo,… bem ao mesmo tempo necessário e suficiente para a nossa felicidade, é a virtude… (Ela) deveria ser o objectivo que guia todas as nossas acções, pois… se obtivermos este constituinte do bem, possuímos o bem último: seremos felizes.» (7). A felicidade segundo Sócrates não se reduz ao interesse imediato nem ao prazer embora não os exclua. Não é egocêntrica. É uma felicidade ligada à partilha de um bem universal, o da virtude e da sabedoria. O método dialéctico de Sócrates permite com efeito passar do particular ao universal, de ligar a parte ao todo. Por conseguinte, ela confere a possibilidade de entrar em contacto com as leis universais.

O procedimento dialéctico abre um acesso ao cosmos en­quanto ordem inteligente, expressão de uma inteligência cósmica (theos). Poupa ao indivíduo um acesso puramente sentimental ao divino e torna-o capaz de aceder através do canal do mental ao plano da inteligência divina, base dos princípios e arquétipos. Quando ele se torna capaz de pensar o universal e de se integrar, pode pensar Deus. Ele acede então a uma participação consciente numa ordem universal inteligente.

A prática da virtude aparece como o meio de desenvolver este nível de consciência e de traduzi-lo concretamente em comportamentos, para além de uma compreensão puramente intelectual.

As virtudes têm um carácter universal. A sua prática permite então, através de comportamentos individuais, alcançar e exprimir uma dimensão universal, e de resolver a aparente contradição entre o universal e o particular. Cada vez que o mais pequeno e o mais anónimo dos homens se ergue contra uma cobardia, encarna na sua plena potência a virtude da coragem. Do mesmo modo uma mãe, na sua dedicação incondicional ao seu filho, encarna a virtude do amor.

O que é a virtude?

A virtude (arêtê) segundo Sócrates é a capacidade de viver um certo número de princípios e valores na vida quotidiana. A sua prática permite levar uma vida moral, ou seja agir em conformidade com o que pensamos. Sem vida moral não há felicidade. É a vida moral que permite transformar o seu comportamento e tirar lições das suas experiências, de mobilizar as suas virtudes na vida quotidiana, sem o que não existe felicidade possível.

“A virtude é um saber prático composto de cinco qualidades, orientadas em cruz como os quatro pontos cardeais, em redor de um centro ocupado pela sabedoria. São a coragem (andreia), a temperança ou moderação (sôphrosynê), a justiça ou probidade (dikaiosynê), a piedade ou devoção (hosiotês) e por fim a sabedoria (sophia). Este conjunto de virtudes constitui a bússola do comportamento. Não se servir dela para orientar os seus actos, ou seja não exercer a virtude é o que suscita em cada um ansiedade, frustração, medo, raiva, culpabilidade, ou por outras palavras má consciência.”

Porque ficamos muitas vezes desiludidos após a satisfação de um desejo? Porque nos sentimos muitas vezes mal quando, para adquirir alguma vantagem, contrariamos uma virtude, mesmo que tenhamos alojado essa falta no inconsciente? Porque nos tornamos críticos e mal-humorados em relação àquele que possui essa mesma virtude? Por causa da nossa incapacidade em reconhecer que parámos de praticá-la. Porque, após ter confessado uma má acção, nos sentimos aliviados? Porque, ao fazê-lo, praticamos a virtude que consiste em reconhecer a verdade. Assim se explica a necessidade de purificação. Em que nos toca a injustiça? No injusto que exis­te em nós. Trazemos a injustiça em nós e é insuportável. Se conseguirmos desembaraçar-nos dela, não a cometeremos mais e esta nunca mais poderá atingir-nos.

“Os Anciãos falavam de Virtude e das virtudes (coragem, temperança, justiça, devoção, sabedoria). A Virtude é a qualidade intrínseca, essencial de cada um, a sua identidade profunda.”

Mas esta identidade, o nosso Eu profundo ou Si, não se exprime plenamente e automaticamente na nossa vida quotidiana. Apenas a percebemos no seu estado potencial. É preciso traçar um caminho através do labirinto das características da nossa personalidade. Esta busca do Si que procura a sua expressão explica a questão que todos nos colocamos: quem sou eu? E como posso exprimi-lo? Esta questão é o reconhecimento implícito para cada um que é outra coisa do que aparentemente pensa ser. Ela é o sinal de que acaba de abandonar a ignorância e de fazer o primeiro passo na busca filosófica.

A Virtude, ou ser, exprime-se na nossa vida através das virtudes. Estas conseguem exprimi-la quando após um longo exercício, o indivíduo conseguiu fazer da sua pessoa o canal da sua essência. A Virtude, liberta, exprime-se através dos comportamentos, actos concretos correspondentes a cada virtude. Quando as virtudes não são actualizadas, a virtude essencial não consegue exprimir-se. A Virtude da cura, se não se exprimir através das virtudes da coragem, temperança, etc., não poderá exprimir-se.

“Praticar as virtudes é o meio de libertar o ser que somos profundamente. É por isso, melhor do que um procedimento intelectual, a prática das virtudes é o meio de conhecer a nossa natureza profunda e de ir ao seu encontro. “

A prática das virtudes permite o domínio de si: do seu corpo, das suas emoções, do seu mental. Praticadas, elas são a via de expressão da Virtude. Elas procuram então a única felicidade que não nos pode ser tirada, a do ser profundo que se exprime.

Podemos comparar a alma com a música e a personalidade com o instrumento. Para que o ser toque música, tem de ter primeiro a coragem de tomar possessão de um instrumento. Vai ter de moderar os seus gestos para não deteriorar o instrumento ou produzir sons desarmônicos. É preciso tocar com afinação, em medida. Então o músico pode começar a servir a música e do plano potencial onde ela estava, dar-lhe concretamente corpo. Pode finalmente colocar aí a sua alma, fazê-la amar e partilhá-la. O virtuoso é aquele que consegue exprimir a Virtude. O domínio de si pela prática das virtudes permite nascer o EU.

O defeito, carência de virtude

Na realidade, contrariamente ao que acreditamos, a virtude é-nos natural. E não é a sua ausência que engendra os de­feitos mas a má aplicação que fazemos dela. Cada virtude com efeito é um comportamento harmonioso que se situa entre dois extremos, em que um peca pela insuficiência e o outro pelo excesso. É assim que a coragem, por exemplo, se situa entre a cobardia e a temeridade.

O que importa é compreender que a virtude é como uma força interior que temos dificuldade em aplicar com equilíbrio e harmonia na acção quotidiana. Ou por medo de aplicá-la, ou por falta de jeito, ou porque pensamos não estarmos à altura. É verdade que é difícil passar da intenção ao acto e esta força derrapa muito facilmente. Exige muita habilidade, que implica uma grande vigilância e uma grande confiança na sua capacidade para aplicá-la. Enquanto não dominarmos a força da virtude, derrapamos no sulco do defeito, por excesso ou por falta. Assim se explica o ditado segundo o qual temos os defeitos das nossas qualidades. O defeito não passa da sombra das qualidades da alma, carência de virtude.

“Também saber reconhecer os seus defeitos e aceitá-los será o melhor meio para identificar as virtudes que possuímos potencialmente. Os defeitos são o material de partida, igual ao chumbo dos alquimistas, que o procedimento filosófico permite transmutar em ouro, ou seja em virtudes.”

Quando esta força, canalizada, segue a via do centro, entre o excesso e a falta, o defeito inicial torna-se virtude. Atingimos então o plano da felicidade interior, a eudaimonia, o plano divino dos adquiridos irreversíveis. Para passar do estado em que o material ainda está indiferenciado para o estado em que se exprimem as qualidades profundas, o filósofo deve aceitar uma transformação, ou seja uma mudança de forma que corresponde a uma nova atitude perante os seus defeitos. Tendo tomado a decisão de cessar de ser o seu instrumento, ele aceita-os e transcende-os. Cessa de utilizá-los para atingir os seus fins pois o fim não justifica os meios. Atribui-se um quadro que permite à personalidade manifestar objectivamente as qualidades da alma e exprimir interioridade.

Também a coragem, como dissemos mais acima, se situa entre os dois extremos que são a cobardia e a temeridade, a temperança situa-se entre a apatia (no sentido próprio da insensibilidade) ou ascetismo excessivo e o deboche: a justiça entre o subjectivismo e o fanatismo: a piedade entre o egoísmo e a superstição; a sabedoria entre a ignorância e o intelectualismo.

Como acabámos de ver, os defeitos nascem das nossas carências na aplicação quotidiana das virtudes. É também observando as nossas próprias incapacidades e as nossas carências que podemos tomar consciência das virtudes que têm di­ficuldade em exprimirem-se em nós.

“É por isso que, para Sócrates, o mal não tem existência em si mas traduz a nossa ignorância, a nossa falta de savoir-faire na expressão das nossas virtudes.”

É neste sentido que a tomada de consciência da verdadeira natureza da felicidade é fundamental. Viver a virtude é a condição da felicidade.

A prática de uma virtude implica o desenvolvimento das outras. Ter uma delas, é forçosamente tê-las todas. Assim, graças à coragem que permite temperar os excessos, adquirimos a temperança e por via de consequência uma certa sabedoria que ela própria chama a devoção ou piedade.

Nos nossos dias, a piedade é relegada para o domínio religioso. O que ela é para Sócrates exprime-se na frase do Eutífron: «Tu és ele». Ou seja, a piedade é o sentimento superior que permite tomar consciência dos laços que nos unem a tudo o que nos rodeia e de vivificá-los. Em relação aos nossos pais, ela quer dizer amor filial, em relação a um próximo, amizade ou ternura, em relação à religião, devoção, em relação à natureza, sentimento ecológico. É ela que está na origem do sentimento de responsabilidade. É ela que nos faz tomar consciência do que devemos aos nossos próximos, ao nos­so país, à humanidade, aos deuses, à natureza. A piedade é um sentimento que implica a tomada de consciência dos nossos deveres em relação aos seres e às coisas e a aceitação livre de os preencher de boa vontade porque isso é justo.

Isto permite compreender a definição que darão os Latinos da virtude (virtus). A arêtê grega torna-se virtus, disposição constante que leva a fazer o bem e a evitar fazer o mal. Compreendemos então a necessidade para Sócrates de impor a si próprio a prática da virtude como uma regra. A lei da acção, para a vida que escolheu, é a prática da virtude. É nesta realização do que se impõe, e não na submissão a um desejo, que encontra a felicidade, uma felicidade voluntária. Aceita pagar o preço, ou seja a obrigação moral. «Preferia fracassar agindo nobremente do que vencer agindo de modo vil.» Esta declaração de Neoptolemo na Filotecta de Sófocles poderia ser de Sócrates. Eis a vida moral.

É esta prática que, noutras escolas filosóficas à maneira clássica (antigas), também se chama discipulado: a partilha de um ensinamento do interior através da sua vivência. A capacidade de por em acção por si mesmo e para si mesmo; sair do sistema de condicionantes exteriores para assumir necessidades ou obrigações interiores.

Um Sócrates próximo dos Orientais

Sócrates compreende a realidade, expulsa a ilusão que ela comporta, posiciona-se em relação ao essencial e não ao aces­sório para adquirir um estado estável, permanente, que lhe permitirá estar sempre mais feliz e nunca menos. A sua linha de conduta é estar feliz. Atinge a felicidade, a iluminação, diria um budista. Ele une-se a este estado que é o bem supremo.

“A sua felicidade não vem de um bem ou de um acontecimento exterior mas de um estado e uma escolha interiores, para ele a melhor escolha. “

Aceita um certo número de regras que se impõe. Se pode ter o acessório que amplifica a felicidade, ele aceita, senão isso não é um impedimento. Não tem apegos, nunca tem nada a perder, nunca cessa de estar em contacto com o mundo, as pessoas, as coisas.

Objectivamente, esta atitude é muito oriental, mais próxima do estado de vacuidade, fonte de plenitude, do que da felicidade que, para um Ocidental, reside na posse. Quando Sócrates diz que não tem nada para dar, é porque não pode contribuir com nada a não ser o que é. Está vazio de possessões porque escolheu o ser e não o ter. É o que faz a sua plenitude. É também o que desarma e é neste sentido que se aproxima do zen. Pode não responder durante semanas ou anos a uma questão, esperando que o próprio discípulo encontre a resposta. Em contrapartida, é capaz de lhe repetir mil vezes a mesma coisa para o trazer à necessidade de encontrar a resposta.

O exercício da soberania, o do poder que temos sobre nós próprios, é o exercício da virtude. A escolha situa-se no plano da ética mas corresponde a uma lei universal: o que os hindus chamam dharma, que convida ao distanciamento. Que as nossas acções estejam sempre em harmonia com a lei universal, aquela que faz mover o mundo. Livre de qualquer impulsividade, permanecemos na via do meio, a da harmonia, sem provocar qualquer desequilíbrio, sem efeitos colaterais que correspondem à noção de karma na filosofia hindu. Como o músico, mestre do seu instrumento e atento às indicações do maestro, não tocará uma nota falsa que rompa a harmonia do conjunto. Nisso, Sócrates identifica-se com os Orientais.

Quando ele diz por exemplo que mais vale sofrer uma injustiça do que cometê-la, Sócrates está feliz, não sofre. Transcende a fonte de dor, do desgosto, da tristeza. Pratica o distanciamento. A injustiça não o atinge e não consegue desviá-lo da virtude, nem alterar a sua felicidade interior. Ele é um filósofo à maneira clássica, livre da ligação e do desejo.

“A via de Sócrates é uma via de acção existencial e não intelectual. O filósofo moral tem uma prática existencial para atingir a felicidade.”

Sócrates não cede à tentação da pena do talião, o que não corresponde a uma atitude ocidental. Ele não cria vingança, não odeia, não pede reparação, não é vindicativo. Mata à nascença o espírito de vingança do ego pessoal que ultrapassa. Torna-se transpessoal e instala-se no Si. Torna-se universal.

 

Fernando Schwartz

Presidente da Nova Acrópole em França


  1. Gregory Vlastos, Socrate Ironie e philosophie morale, Aubier, p. 317.
  2. Platão, Banquete, 205a2-3.
  3. Gregory Vlastos, op. cit., p. 279.
  4. Idem.
  5. Idem, p. 318.
  6. Idem, p. 303.
  7. Idem, p.318.

Não há plugins para instalar ou ativar. <a href=" %1$s"title="Voltar para o Painel">Voltar para o Painel</a>

Go to Top