Autor
Nova Acrópole
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Nova Acrópole
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“Se me pusesse agora a recordar a genealogía de Hesíodo e os antepassados dos Deuses que acabo de citar, não me cansaria de fazer ver que os seus nomes são inteiramente apropriados; e continuaria até conseguir provar aonde poderia chegar esta sabedoria, que me surgiu assim de repente, sem saber donde, e que nem sei se devo ou não dar por concluída”
Cratilo, de Platão (1)
“É bom que se invoque os Deuses, mas convém que além de invocar os Deuses, o homem também se ajude a si próprio”
A interpretação dos sonhos de Artemidoro de Éfeso
O filósofo e gramático estóico Cornuto, parente de Séneca, escreveu no século I d.C. uma obra intitulada Compêndio de Teologia que estuda o significado flosófico e naturalista dos Deuses e Mitos Gregos. Os Deuses, afirma, são Forças e Essências Inteligentes da Natureza, entendendo-se esta última como o “Todo em Acção”; e os mitos reflectem as operações dessa mesma Natureza, que inclui, desde logo, a Alma de todos os seres vivos, e como tal, também a do homem. A escola estóica e a filosofia greco-egípcia – recorde-se, a propósito, Chaeremon – analisavam e interpretavam estes mitos, não só sob uma perspectiva moral, mas também como forma de compreender a natureza e as leis e processos internos que a regem. Referindo-se, por exemplo, a Hércules, ele diz que representa a Força ou Tensão Interior, a vontade que permite a cada ser vivo pronunciar o Si da sua verdadeira natureza, isto é, ser fiel a si próprio, cumprir a missão atribuída por Deus ou pelo Logos.
Herácles é a tensão que existe em todas as coisas, graças à qual a natureza é forte e poderosa, invencível e insondável, dispensadora de força e causa de potência, ainda que em cada uma das partes… Talvez a pele do leão e a maça, que segundo a antiga teologia lhe correspondem, tenham de ser assim interpretadas…uma e outra são deste modo símbolo, porventura, da força e da nobreza.O leão é, com efeito, o mais vigoroso dos animais selvagens; a maça, a mais potente das armas. E talvez o deus seja também representado como arqueiro, pela sua capacidade de entrar em toda a parte e de, graças à tensão, disparar flechas…E não nos parece improcedente atribuirmos ao deus as doze proezas, como também fez Cleantes. (2)
É que, como afirma H.P. Blavatsky na sua obra Ísis sem Véu, existe em todos os mitos um logos, uma ideia, um ensinamento, uma mensagem oculta, expressa através da linguagem universal dos símbolos. A palavra “mithos”, em grego, significa “palavra, discurso, narrativa, feito, intenção, lenda” e constitui o modo de objectivação do pensamento primitivo. O mito é uma realidade psicológica, vive numa dimensão invisível e imaterial, a dos nossos sonhos, anseios, esperanças e recordações, este cenário interior e comum a toda a humanidade, onde os símbolos têm vida e luz própria; e onde as ideias projectam as suas verdadeiras imagens, prenhes de emotividade e significado. Afonso X o Sábio afirmava, em As Sete Partidas, que as Espadas fazem parte dos decretos de Deus; e exprimia deste modo, por exemplo, o valor de um símbolo que constitui uma necessidade da alma humana, seja ela Excalibur, em ferro, ou uma espada-laser como nas modernas epopeias da Guerra das Estrelas, a espada que garante o dever ser e que ainda hoje se acha exposta, como símbolo, nos Tribunais de Justiça. Muitas vezes, quando estudamos ou lemos a História com paixão, queremos conhecer os feitos, a lei de causa e efeito aplicada à conduta humana, a fatalidade que governa os acontecimentos e a vontade inquebrantável da alma humana no encadeamento da vida e do tempo. Mas também queremos mergulhar no passado, em busca de símbolos e mitos que recordamos de alguma maneira, porque jazem no fundo do nosso inconsciente e, sem eles e sem aquilo que representam, a vida não seria nada. Como dizia Mircea Elíade, o rito é uma evocação do mito, de um acontecimento in illo tempore, é um retorno às origens para evocar a força dos primórdios, a sua arkhé, pois nesta dimensão se acha a estrutura da alma, e portanto, o suporte da vida. Mª Dolores Fdez Figares exprimiu, de foma magistral, o significado desta palava, mithos, na Antiga Grécia, e do seu valor no contexto do pensamento antigo: Homero utiliza o termo mythos associado à palavra persuasiva, à retórica, à eloquência, associado aos deuses enquanto herança da concepção arcaica do mito, enquanto palavra sagrada (hieroi logoi).Os filósofos presocráticos, ao recorrerem aos mitos como símbolo, não se propõem persuadir, mas antes formular verdades. Daí o apeiron de Anaximandro, ou o “tudo está repleto de deuses” de Tales.
Ao falar de mitologia, Platão faz referência ao relato propriamente dito. Introduz a palavra logos e utiliza-a em diferentes ocasiões como se significasse o mesmo que mythos, fazendo-nos ver que existem dois modos de falar dos seres divinos e dos deuses: o logos e o mythos, que podem estar unidos num mesmo relato (…)
As acepções modernas e latinizadas da palavra referem-se, por exemplo, a uma “essência que, na sua época, foi acessível, e agora já não o é”, segundo palabras de Furio Cesi, enquanto Creuzer, no século XIX, admitia que os sacerdotes que elaboraram as primeiras doutrinas da humanidade vestiram os símbolos com roupagens mitológicas, e afirmava que “as ideias constitutivas das doutrinas religiosas brotam dos símbolos como um raio que emerge das profundezas do ser e do pensamento”(3)
« a língua do mistério tem sete chaves, e que cada uma delas abre uma porta para um horizonte de diferentes conhecimentos, mas todos eles harmonizados à volta das mesmas ideias graças ao poder dos símbolos»
É difícil dizer qual a origem da Mitologia Grega, de onde emanam as suas águas salutares, repletas de símbolos e de conhecimentos. Os textos mais antigos consistem nas tradições órficas, os versos imortais de Homero na Ilíada e na Odisseia, as obras de Hesíodo, muito em particular a Teogonia; e fragmentos que conhecemos de poetas da Grécia arcaica e de filósofos presocráticos como Empédocles, Heráclito, etc… Poetas para quem os mitos constituíam já a veste alegórica de verdades inefáveis, apenas reveladas no interior dos templos e cujo segredo se encontrava selado por via de terríveis juramentos. Quando estudamos o significado da mitologia grega, devemos considerar somente as tradições orais e escritas, dado que, por vezes, por exemplo, na cerâmica geométrica grega, já aparecem representações e cenas de mitos que podemos facilmente identificar, embora também as haja de outros que se mantêm silenciosos, mudos, pois não dispomos de qualquer narrativa que incluísse as referidas imagens, ainda que possamos adivinhar o seu simbolismo, por comparação com outras culturas. A Teogonia de Hesíodo parece ter a sua origem nos textos mesopotâmicos, no que respeita ao modo como se sucedem as diferentes dinastias divinas; a sabedoria órfica evoca, por vezes, a metafísica védica, e outras, o conhecimento egípcio; o poema homérico da Ilíada reúne tradições micénicas e, inclusivamente, cretenses… Onde poderemos encontrar, então, a verdadeira raiz desta mitologia? Será o conjunto, muitas vezes caótico, dos mitos gregos, o edifício em ruínas da religião órfica primitiva? O certo é que não avaliámos, na sua justa medida, o legado de Orfeo, filho da musa Calíope, e que, segundo determinadas tradições esotéricas, é tão mítico como a cidade de Tróia e é designado como uma “encarnação divina”, ou avatar histórico, deste modo semelhante a Zoroastro, Hermes Trimegistro, Jesus ou Buda. Ainda não se fez um estudo profundo e filosófico sobre os chamados Hinos Órficos a ele atibuídos, restos mutilados, porventura de um conhecimento mágico e teosófico, para além de místico e prático, e em que também devemos situar o seu Lapidário ou Tratado sobre as Pedras, de antiguidade indefinida. Não basta conhecer o grego antigo para se fazer uma tradução correcta destes textos, por outro lado quase desprovidos de sintaxe, já que cada hino é uma colecção de epítetos ou de atributos do Deus a quem se referem. Muitas vezes, torna-se necessário, além deste conhecimento da língua, estar imbuído do espírito desta, isto é, da alma grega, para se encontrar a ideia certa no meio de tantas opções que se apresentam ao tradutor. Relativamente às obras gregas, um exemplo de erudição e inspiração foi Thomas Taylor, referência obrigatória para todos quantos estudam a cultura clássica. Podemos atribuir a origem da mitologia grega ao próprio nascimento da cultura heládica, que surge, em alegoria, com o nascimento da Europa. E, de certo modo, a alma da cultura europeia e ocidental está muito vinculada à Alma Grega, que primeiro Alexandre Magno, e depois Roma, expandiram até aos confins do mundo “conhecido”: toda a bacia do Mediterrâneo e Ásia Menor, até à própria Índia. Relata Ovídeo, nas suas Metamorfoses, que Zeus, símbolo do poder que governa os destinos do mundo, assumiu a forma de um touro e, cavalgando pelas extensas planícies do Mediterrâneo, levou em andor a virgem Europa, uma das oceânidas, até uma gruta junto à praia, em Creta, e procedente da Fenícia. Da união entre a Europa e Zeus viriam a nascer Minos, rei de Creta; Radamanto, que se dirigiria às ilhas Cíclades; Eaco, que governaria as ilhas de Égira; e Sarpedão as terras da Lícia.(4) Curiosamente, encontramos nestes centros – em todos ?–, e fundamentalmente em Creta, com ramificações até Micenas, as sedes da cultura grega, e talvez, portanto, as origens da sumitologia. Ovídeo, nas suas Metamorfoses, coloca na boca de Vénus as seguintes palavras, dirigidas à Europa: “Será que ignoras que és esposa de Júpiter? Cala o teu pranto e aprende a ser digna dos altos desígnios a que foste chamada. De hoje em diante, uma parte do universo terá o teu nome”.
H.P. Blavatsky, na sua imortal Doutrina Secreta, afirma que a língua do mistério tem sete chaves, e que cada uma delas abre uma porta para um horizonte de diferentes conhecimentos, mas todos eles harmonizados à volta das mesmas ideias graças ao poder dos símbolos. Tesouros de Alquimia e Química, Astrologia e Astronomia, Matemática e Geometria Sagrada, Psicologia e Filosofia, Cosmogenia, Teogonia e História da Humanidade escondem-se por detrás do manto da alegoria.
Por exemplo, Platão analisa e comenta numerosos mitos, segundo uma perspectiva filosófica. Alguns destes mitos são do conhecimento comum entre os gregos, enquanto que outros, como o mito da caverna, o da encarnação das almas, o de Er, etc., etc., etc., revelam conhecimentos surpreendentes que adivinhamos serem de origem egípcia, numa época em que o Egipto se nos mostra como Universidade Iniciática de toda a Europa e Ásia; os próprios celtas referem, por exemplo, no Leber Gábala, que os seus sacerdotes druidas deveriam viajar para o Egipto, a fim de ali adquirirem conhecimentos superiores.
Há ensinamentos que Platão não considera prudente revelar abertamente nos seus livros, e deste modo, recorre a figurações míticas, que possivelmente explicaria na sua Academia. Mas mesmo os textos de mais fácil compreensão incluem enigmas e significados encobertos. Platão, na sua Sétima Carta, revela que os seus Diálogos, sem uma explicação e uma orientação na invisibilidade das Ideias e nas vivências sagradas, são a muralha – exemplo muito utilizado pelos estóicos – para além da qual a mágina Fortaleza do Conhecimento se achava invisível ao não iniciado. A leitura e comentário das suas obras, sem a transmissão do ardor do discurso, não basta para a transmutação alquímica… mas, como diria H.P. Blavatsky, certas chaves e vivências convertem os seus livros no melhor compêndio que o Ocidente possui sobre os Ensinamentos Iniciáticos; assim como no Oriente, continua H.P.B., a melhor síntese desta Doutrina Secreta é o Bhagavad Gita, um tratado de filosofia e de vida incluído na epopeia do Mahabharata.
Platão examina, por exemplo, no Cratilo, o significado dos Deuses Gregos, analisando as etimologias dos nomes que lhes damos, isto é, a imagem mental que d’Eles temos:
Nós nada sabemos nem da natureza dos Deuses, nem dos nomes com que são designados; nomes que, sem dúvida, são a exacta expressão da verdade (…) e começando por confessar perante os Deuses que não iremos indagar a sua natureza, para o que não nos reconhecemos capazes, e que só nos ocuparemos da opinião que os homens formaram sobre os deuses e da virtude que levou à atribuição desses nomes.
Assim, sobre HESTIA, que representa o fogo sagrado do lar e que habita no interior da Terra; e também o espírito que se exprime como uma chama em tudo o que vive e existe; Platão diz que o seu nome significa a essência e o impulso. Enquanto essência, nasce de si própria; e enquanto fogo, recorda-nos a imagem que a Védica indiana tem deste elemento e da forma como nasce. Dizem os rishis, sábios inspirados antigos, que este fogo nasce do roçar de dois madeiros chamados aranis e que, geométricamente, o Fogo, pai-mãe de todos os seres, é a suástica, cruz giratória cujo nome, em sânscrito, significa “O Eu que nasce de si próprio”, ou a essência semovente (por-si-própria-gerada), a cavalgadura de todos os Deuses e Forças espirituais e materiais, a Electricidade Universal, causa sem causa de todos os fenómenos da Natureza.
«Chôros é também “espaço” e “círculo”, o símbolo mais perfeito para exprimir o tempo ilimitado, sem princípio nem fim; mas que, todavia, configura no seu seio um espaço para a experiência, para a mudança, para o movimento da vida, para a causa que gera um efeito; e portanto, para o “tempo” que pode ser medido na medida destas mudanças»
CRONOS e REA, pai e mãe da segunda dinastia olímpica, e segundo o filósofo Heráclito, recorda-nos Platão, origem de todos os Deuses; são “os que correm”, porque de certo modo, Rea, a grande mãe, é o Espaço enquanto móvel (assim como GEA é imóvel, e natureza-raiz de todos os seres é o Espaço e também Grande Mãe, enquanto suporte e estrutura) e Cronos, sabemos que é o Tempo. E deles podemos afirmar o que refere H.P.B. a respeito dos deuses egípcios ATUM em um: o Peregrino que atravessa os milhões de anos é o nome de Um, e o grande verde (as águas primordiais do Caos) é o nome do outro; um, engendrando milhões de anos sucessivos, o outro, adentrando-se neles para os restabelecer atrás.
ZEUS, que a filosofia neoplatónica identificou com o Logos (Vontade-Amor-Inteligência) de tudo aquilo que vive; e do que Séneca, nas suas Questões Naturais, afirmou ser “o Todo que podemos ver e o Todo que não vemos”; representa, segundo Platão, a causa da vida, aquele por quem vivem todos os seres vivos; e é portanto Senhor e Rei do Universo. Um conceito equivalente ao de Cristos Pantocrátor que tinham os cruzados medievais, Cristos Rei do Mundo.
Zeus seria filho de CRONOS, que misteriosamente Platão relaciona com koros, palavra que significa, diz, não “filho” mas sim “o que há de puro e sem mescla na inteligência”. Chôros é também “espaço” e “círculo”, o símbolo mais perfeito para exprimir o tempo ilimitado, sem princípio nem fim; mas que, todavia, configura no seu seio um espaço para a experiência, para a mudança, para o movimento da vida, para a causa que gera um efeito; e portanto, para o “tempo” que pode ser medido na medida destas mudanças. Recorde-se que todas as medidas nascem de um número e, portanto, são mentais, como o tempo, que Platão considera no Timeo “um número em movimento”. Não será, porventura, o número no movimento?, o que escreveu Platão e logo tergiversaram os tradutores.
E o Pai de Cronos, o tempo, é URANO, o Céu. Geralmente, associa-se Uranos ao céu, mas no sentido de “noite estrelada”, o que é muito evocativo, pois assim o “tempo” nasce, é gerado por e nas influências dos “mil olhos da noite”. E a sua substância tonar-se-ia homogénea e sem qualidades, sem a presença destes infinitos poderes estelares que tecem a vida e, portanto, o tempo. Numa chave astronómica e humana, o tempo é medido por intermédio do movimento das estrelas; e a evolução da nossa morada, a Terra, ante o Sol, a Lua, os Planetas e as estrelas, é a que configura o tempo e o ritmo da vida e da natureza.
Também diz Platão que o nome de Urano significa “Aquele que olha do alto”, o espírito puro, portanto, a Estrela do Y na alma. E segundo uma interpretação astronómica e cosmobiológica, deve ser, portanto, Sírio, a Estrela dos Mistérios. O deus Urano, grego, é o equivalente a Varuna, da Védica indiana, segundo demonstrou George Dumézil, ao comparar nomes e atributos.
Varuna é o rei das águas, da noite, dos Juramentos e do oceano constelado, que consideramos como o melhor símbolo do infinito. Varuna e Mitra são irmãos gémeos, como as estrelas Sírio A e Sírio B na sua dança perpétua. São quase sempre invocados juntos, nos Vedas. Varuna é a Noite e o não manifestado, e Mitra é o Dia e a Luz. Nas representações de Mitra de origem persa, e tão frequentes no Império Romano, faz-se do Sol o mensageiro de Mitra, o seu subordinado; como nos mistérios egípcios em que o Sol, Ra, desvia sempre a proa da sua nave celeste para Sírio, Sept, isto é, orbita como um “planeta” em torno do Sol Central que seria esta estrela que os sábios do Nilo identificaram com Ísis, a Sabedoria.
Portanto, Uranos, na “etimologia” a que se refere Platão, é “Aquele que olha do alto”, e como tal, idêntico a Avalokiteshvara do Budismo, a divindade mais elevada, que significa também “o Senhor que olha do alto” e é filho de Amitabha “a Luz sem limites”.
Platão continua a jogar com as palavras e as etimologias para nos fazer ver que HADES, o deus da morte, representa, na realidade, o invisível e o conhecimento oculto de tudo o que é belo. POSÉIDON, deus dos mares, é “uma grilheta para os pés”, já que o mar limita os nossos passos; e é também, diz, o deus que tudo sabe, e o que perturba a terra. DEMÉTER, a natureza fecunda, chama-se assim graças aos alimentos que nos dá enquanto mãe. E HERA, a palavra empenhada, é a “amável”, porque representa a vida que conserva as coisas, ao conservar as suas propriedades; e porque a vida é “amável” quando promove o acordo entre os homens por meio da palavra, pronunciada no ar; e violenta e cruel, antessala do caos e da dissolução quando não se cumpre a palavra; quando as palavras nada atam nem desatam, mas antes se esfumam no ar. O ar, que é suporte da palavra, é também o elemento desta deusa que aparece representada encadeada entre o céu e a terra, e como divina mãe, rainha do céu. Os gregos diziam que em cada homem existe um Hércules, por quem juravam; e em cada mulher vivia a deusa Hera, símbolo do Eterno Feminino e da energia psíquica que nutre as almas enquanto vivem.
PROSERPINA ou PERSEFONE, Deusa em quem encontravam fundamento os Mistérios de Eleusis, representa a alma da natureza, e portanto, a sabedoria; submergindo-se no invisível, o Hades, e renascendo com a Primavera. Platão diz que o seu nome significa ou deriva da “faculdade de tocar e de apanhar o que se move”, isto é, a sabedoria, que na Índia representava através da ave mítica Kalahamsa (Cisne Negro), que separa o leite da água misturados na corrente de um rio. Que exprime o seu nome, interroga-se Platão no Cratilo? E responde: “A sabedoria desta deusa. No movimento que impulsiona as coisas, a sabedoria consiste em poder tocá-las, apanhá-las, segui-las na sua fuga”
Apolo, prossegue Platão, rege a música, a adivinhação, a medicina e a arte de disparar flechas, e o seu nome significa que purifica, que lava, que liberta dos malefícios da alma e do corpo. As MUSAS que exprimem as artes e os meios; e a inspiração através da qual o homem se harmoniza com o céu e com a verdade; significam, diz Platão, a indagação e a filosofia. ARTEMISA, que identificamos com a Lua, protectora das crianças, dos jovens e das donzelas, é a pureza e a decência, e também a integridade. AFRODITE, deusa da beleza e do amor, recebe o seu nome pelo facto de nascer da espuma do mar, isto é, da abundância, da excelência fértil da vida.
PALAS, associada a Atena, exprime a arte e as armas, o impulso da acção nobre, o assassinar da inércia – tamas, em sânscrito – a “acção de lançar-se a si próprio ou de lançar algum objecto levantando-o da terra e brandindo-o nas mãos”. ATENA, deusa da Sabedoria Activa, da Guerra Inteligente e protectora das Artes – especialmente do tecido? – e defensora das Causas Nobres significa, diz Platão, Inteligência de Deus, e HEFAISTOS, deus do Fogo, é “o árbitro da luz”. MARTE, deus da Guerra, deve o seu nome à virilidade e à qualidade de inflexível, de não transigir com nenhuma condição. A etimologia de DIONÍSIO é-nos revelada por Artemidoro de Éfeso, como “aquele que consegue a realização de qualquer coisa”, pois representa o espírito agitando-se na matéria, o entusiasmo, isto é, “Deus em nós”.
Da antiguidade clássica, chegaram-nos muitas alusões de como interpretar os mitos gregos, mas porventura uma das mais surpreendentes e esotéricas é a interpretação lexarítmica (letras-número), uma espécie de kábala grega. Cada letra do alfabeto grego, tal como no hebraico e em muitas outras línguas antigas, corresponde a um número. E do mesmo modo como as primitivas teogonias e indagações sobre a natureza do real se faziam através de números e formas geométricas, cada divindade, relação divina ou cena mitológica também tem uma interpretação número-simbólica que exprime um mistério da natureza e da alma. Ainda que este tema se encontre genial e profusamente desenvolvido no artigo de Giorgios A. Planas, Helena Petrovna Blavatsky e a redescoberta da kábala grega e suas leis. A chave lexarítmica de interpretação, que aparece neste mesmo livro, destaquemos alguns feitos de profunda filosofia, para todos quantos se tenham interessado pelos deuses e mitos gregos e pela geometria sagrada. A relação entre Apolo (1061) e Artemisa (656), segundo esta chave lexarítmica, é Pi, o Número e Proporção de Ouro que rege a Natureza e a Arte Antiga. Claro está que Apolo representa a luz solar e Artemisa e Diana a luz da lua; e do equilibrio entre ambas é que a natureza, na Terra, floresce nas suas quase infinitas formas de vida. Apolo é o racional – no seu sentido mais elevado – e Artemisa é a intuição, ambos necessários no caminho da sabedoria.
Okeanos (1146): Neilos (365) é aproximadamente igual a Pi, a relação entre a circunferência e o diâmetro. Pois na mitologia grega, Okeanos aparece como um rio de água doce que rodeia a Terra, enquanto que o rio Nilo representa a corrente da vida que desce do pólo espiritual, fertilizando a matéria. Ou seja, dentro da Geometría Sagrada, é o diâmetro vertical dentro do círculo.
É um símbolo muito semelhante ao lexaritmo que se segue:
2x O Céu (Ouranos), dividido por Zeus (612) é igual a Pi. Aqui, o Senhor que rege a Vida é Zeus, que atravessa como um raio o duplo céu, ou seja, as “águas de cima” e as “águas de baixo” do Génesis (o MI e o ME hebraicos). Ou, se entendermos o Céu como uma circunferência completa, Zeus representa o duplo diâmetro no círculo, ou seja, outra vez a cruz giratória ou suástica, símbolo da Vontade e da Actividade Contínua, um símbolo muito apropriado para se referir a Zeus.
A profundidade destas combinações matemáticas é abissal, faz penetrar a alma nas trevas do mistério de onde faíscam relâmpagos de intuição. Abrem a mente para um universo de significados que fazem a pessoa, senão mais sábia, pelo menos mais humilde. Por exemplo, Pan (Todo) tem o mesmo lexaritmo que a unidade (Monas), 131; Anthropos (Homem) que a Natureza (Fisis), 1310, ou seja, dez vezes mais (que Unidade e Todo) “indicando o paralelismo entre a evolução ontogenética (do homem) e a filogenética (da Natureza), do qual nos fala a Filosofia Esotérica desde há milenios, bem como a Biologia actual”(5)
Na República, Platão manifesta-se avesso a acreditar nas narrativas mitológicas e a fazer delas um modelo de vida, ou a deduzir delas uma moral. Diz que se os seus Guardiães de uma Cidade Ideal acreditassem literalmente, por exemplo, no lamento da sombra de Aquiles no Hades, que afirma que antes seria o último dos escravos na Terra do que rei dos mortos no mundo das sombras, dificilmente cumpririam o que deles se espera quando tiverem de enfrentar o perigo e a morte.
Platão declara-se, pois, inimigo de Homero e de Hesíodo na educação dos jovens; mas acrescenta que os que sabem, em conselho secreto, estudarão o verdadeiro significado destes mitos. Porque estas meditações e estudos são já para mentes avezadas na filosofia e na indagação da natureza. Orígenes, o magno filósofo cristão fundador da Escola Catequética de Alexandria, leccionou durante muitos anos aos seus discípulos, Lógica, Matemática, Literatura Grega e Latina, Gramática, Dialéctica, Música… antes de iniciar os estudos de alegoria cristã, hebraica, grega ou egípcia, pois os referidos estudos podem desquiciar as mentes, ou pior, tornar os jovens cépticos, ao trivializarem e ao fazerem jogos à volta dos símbolos religiosos, vulgarizando-os, e arrebatando-lhes a vida natural que possuem no mundo das Imagens e dos Sonhos – que são reais.
Também é certo que estes mitos deram grande versatilidade e inspiração à alma romana e grega. As fábulas, discursos e comentários sobre mitos eram de grande importância nos exercícios preparatórios do jovem orador, tal como nos descrevem Quintiliano ou Santo Agostinho; e o discípulo acostumava-se a reflectir sobre eles, a imaginá-los, a vivificá-los através da sua vontade e das suas palavras; e a comprender o dinamismo e as tensões psicológicas da vida através destes mitos. Ou seja, penetrava no seu próprio mundo interior e nas causas invisíveis da vida, através das imagens e cenas dos mitos gregos. Estas evocam e perfilam, assim, cenas psicológicas que a alma deve enfrentar no seu caminho pela vida. É tal a variedade e perspicácia destes mitos, até ao ponto de penetrarem na alma e na vida, que é muito difícil encontrar uma situação, um problema, uma dificuldade que não possa ser representada numa cena da mitologia grega, e o melhor, é que nos seus símbolos reside também a chave para abrir essa porta, para vencer essa dificuldade… Tal é a força e a beleza do legado de Orfeu!
O valor dos mitos gregos floresceu, de novo, no Renascimento, como estudo de psicologia e como filosofia secreta, analisando o significado dos seus símbolos presentes na magia, na arte e na política. A nova filosofia da natureza desponta como um Sol iluminando a vida com os valores, conceitos e mitos da Grécia e de Roma, imbuídos de um cristianismo místico, que enche de piedade os seus conteúdos. Filósofos, eruditos e poetas, como Bocaccio – no Cuatroccento –, e depois Natali Conti e Perez de Moya, escrevem extensos e profundos tratados sobre o significado destes mitos. Médicos e magos como Cornélio Agripa – ao serviço do imperador Carlos V – na sua Filosofia Oculta, penetram no seu significado mais esotérico.
Sábios, místicos e ideólogos como Giordano Bruno recriam toda uma cosmovisão com as imagens destes mitos, uma cosmovisão que permita à alma humana harmonizar-se com a natureza e com o sentido da vida; e que, à maneira das iniciações antigas, evoque todos os seus poderes latentes. Qual é, então, a finalidade de uma obra como o De Imaginum, que com cenas mitológicas gregas cria mandalas e yantras geométricos, ao estilo hindu e tibetano? Boticelli pinta, com o poder destas imagens e símbolos, telas que são verdadeiros talismãs mágicos, como O Nascimento de Vénus ou A Primavera, destinadas, segundo consta da sua correspondência trocada com o neoplatónico Ficino, a evocar a beleza, jovialidade e bondade, e a neutralizar as influências ásperas de Saturno e de Marte; influências que inundam de melancolia ou fazem arder de ira o sangue.
Ainda hoje a Psicologia reivindica fimemente o valor destes mitos gregos, e desde Freud, Jung e toda a psicanálise, até Joseph Campbell, mergulha neles para achar as causas e os modos do comportamento humano; ou para descobrir nos velhos Deuses as “novas” forças psicológicas e espirituais que conformam o motor da conduta e os imanes de todas as tendências, esperanças ou anseios.
Recordemos Séneca quando desvendava o sentido filosófico dos Deuses da Religião Romana, e expunha assim o enfoque da Escola Estóica. É que esta Escola foi a que mais seriamente estudou a filosofia oculta nestes mitos; e encontrou neles as operações do corpo, da alma e do espírito da Natureza: leis, princípios e formas que se manifestam no visível e no invisível desta mesma Natureza. Isto é, as fórmulas algebraicas da existência, e as forças que dinamizam e corporizam estas mesmas fórmulas e ideias.
«a linguagem dos sonhos está ligada à dos mitos e como a analogía é a chave desta linguagem do invisível e da alma.»
«É então que se percebe como os mitos influenciam, desde outra dimensão, todas as realizações da História, e que de certo modo codificam e vitalizam toda a bagagem do devir humano»
Os mitos gregos, tal como aqueles outros expressos pelos poetas inspirados pelos Deuses, ou os que os Iniciados desenharam para levar a luz dos Arquétipos até às gentes; estão enraízados no mais fundo da alma humana, como o fundamento atávico e instintivo de onde se elevam as suas criações, como a própria linguagem do inconsciente, como as próprias formas vivas do invisível. A alma sente este legado, esta mensagem, quando se desmorona a muralha do quotidiano e do prosaico, quando a tenaz da carne e do sangue se desvanecem e afrouxam a sua pressão. No sonho, nas situações limite, no ceremonial mágico, ante a presença da morte, raptada a alma num êxtase místico ou sob as asas protectoras de um luminoso Ideal, tornam-se presentes o valor e a vida destas imagens, que conformam uma linguagem da alma e do mistério. É então que se percebe como os mitos influenciam, desde outra dimensão, todas as realizações da História, e que de certo modo codificam e vitalizam toda a bagagem do devir humano. Artemidoro de Éfeso escreveu, no século II d. C., um tratado sobre a interpretação dos sonhos, discípulo, porventura, das Casas da Vida ou das Escolas Iniciáticas egípcias, com uma tradição milenária neste tipo de estudos. Nele, e com uma infantilidade conhecida de todos quantos tenham analisado e interpretado os sonhos com seriedade, revela como a linguagem dos sonhos está ligada à dos mitos e como a analogía é a chave desta linguagem do invisível e da alma. Por exemplo, o facto de uma mulher sonhar com uma pomba simboliza e diz muito sobre ela própria, e a pomba está associada a Afrodite, a deusa do amor e da feminilidade. Também representa a amizade, as associações relacionadas com o comportamento grupal destas aves, e Afrodite é a bondade e a concórdia no coração humano, e como tal, o fundamento amável de todo o tipo de associação. O Cisne, ligado a Apolo, revela a partir do inconsciente uma pessoa amante da música, ou a própria Música, e se o cisne cantar durante o sonho, diz-se que anuncia a morte. O delfim, associado também a Apolo e a Afrodita, representa o amigo, enquanto que todos os outros peixes e animais marinhos significam os inimigos ocultos. Ver Atena em sonhos, dizem, é um bom presságio para um filósofo, pois “esta divindade é considerada como a personificação do pensamento, razão por que se conta que ela nasceu do cérebro”
A morte é representada como uma viagem muito longa; e uma viagem muito longa em sonhos também representa a morte. Afirma Artemidoro que os antigos costumavam dizer que aqueles que partiam para muito longe tinham visitado o Hades, pois todo aquele que vive só em pensamento, vive só no Hades.
Na linguagem dos sonhos, aparece também um simbolismo mitológico e mágico que está enraízado no folclore popular, no mais profundo das suas crenças. Por exemplo, Artemidoro diz que “A Lua é a mulher e a mãe daquele que sonha – idêntico significado lhe atribuem os astrólogos –, pois é considerada fonte de toda a nutrição”. Também significa dinheiro, bem-estar e negócios, relacionado com as “contas que se fazem no final do mês”, daí o costume portugués de oferecer moedas à lua, expondo-as à sua luz, para que esta conserve e faça crescer o património, enquanto lhe dizem:
Lua Nova
Tu bem me vês,
Dá-me dinheiro
P’ra todo o mês.
E a sabedoria popular, com a sua capacidade de conservar e transmitir o eco de antigos conhecimentos, com a sua fidelidade caleidoscópica – permanecem as imagens fragmentadas e os usos, mas não os significados e a ciência – guardou expressões e adágios procedentes destes mitos gregos. Por exemplo, dizemos “Leito de Procusto” quando queremos forçar todos, contranatura, a um mesmo ritmo e medida. Bem podemos falar do leito de Procusto da nossa civilização ocidental, onde todo aquele que não se ajusta à medida dos nossos valores materialistas, no fim, ou se associa à pressão ou é despedaçado pela engrenagem da vida, relegado para uma vida marginal. São os que não se integraram no nosso modus vivendi, e que conformam, naturalmente, os novos núcleos de barbárie que levaram a nossa civilização a uma nova Idade Média. Uma “odisseia” é um périplo através de mil vicissitudes e perigos, para chegar, finalmente, a um refúgio de paz, a Ítaca da obra de Homero.
A analogia e as associações de imagens do mundo onírico é que nos permitem entender melhor o significado psicológico dos mitos gregos. Analogia de movimentos, de sons, de gestos, de formas, de cores, de nome, de etimologia, de números associados a palavras, etc. A metáfora é rainha do mundo imaginário, como dizia Henry Corbin; e as figuras ou tropos da linguagem, que banham de sentimento e de vida a racionalidade do pensamento, denotam a presença deste mundo mítico e desta agitação dionísica no discurso e na alma humana.
Artemidoro de Éfeso ilustra, com vários exemplos, o modo como funcionam estas analogias e metáforas no inconsciente, durante os sonhos, e portanto, como devemos actuar na hora de interpretar os mitos antigos, que são como blocos de gelo nas águas do nosso inconsciente. Diz ele:
“As coisas que se movem da mesma maneira têm um significado idêntico, quando aparecem em visões oníricas. Por exemplo, um indivíduo sonhou que era mordido no pé por uma serpente; pois bem, num caminho sofreu um ferimento causado por uma roda nesse mesmo membro, onde lhe pareceu em sonhos que recebera uma mordedura. Como se sabe, a roda move-se girando sobre si mesma, tal como a serpente também se enrosca”
A isto, nós acrescentamos que a forma de a serpente se enroscar é mais mítica, simbólica e conceptual do que visível na natureza. É difícil obsevarmos na natureza uma serpente a morder a própria cauda, mas em todas as cosmogonias e mitologias antigas aparece esta imagenm, o que quer dizer que esta imagem está mais presente na alma humana do que na própria natureza sensível que nos rodeia.
Outra analogia, que aparece também na sua Arte de Interpretar os Sonhos, poderá ilustrar melhor ainda esta ideia:
“Um escravo sonhou que jogava à bola com Zeus. A certa altura, teve uma disputa com o seu amo e, por ter-se exprimido com excessiva liberdade, atraiu a antipatia daquele. Na realidade, Zeus representava o patrão, e as idas e vindas da bola o intercâmbio de palavras e a discussão, visto que os jogadores competem entre si e, recebem a bola tantas vezes quantas a devolvem. Geralmente, os donos, os pais, os mestres e os deuses têm o mesmo significado (no mundo onírico).(6)
Subba Row, teósofo e filósofo vedantino, no século XIX, num breve artigo intitulado “Os Doze Signos do Zodíaco”, fornece-nos uma das chaves de encriptação de símbolos de certas obras sânscritas, e que pode servir de guia ou de referência para penetramos no labirinto dos mitos gregos. O método não tem de ser o mesmo, mas percebemos assim o modus operandi, ou um deles, dos sacerdotes antigos. H.P. Blavatsky comenta este método na sua imortal Doutrina Secreta:
Subba Row, no seu engenhoso artigo “The Twelve Signs of the Zodiac”, fala do “significado oculto das palavras sânscritas” e das seguintes regras para se descobrir, nos antigos mitos ario, “o sentido profundo da nomenclatura sânscrita:
1º Pesquisar todas as interpretações e sinónimos da palavra em análise
2º Determinar o valor numérico das letras componentes da palavra, segundo os métodos indicados nas antigas obras tântricas (obras Tântrika-Shàstra de encantamento e magia)
3º Examinar todos os mitos e alegorias que se relacionam com a palavra em questão
4º Permutar as sílabas da palavra e descobrir o significado dos novos grupos formados”
Não obstante, Subba Row não nos fornece a regra mais importante, e tem razões para o não fazer. Os Shâstras tântricos são tão antigos como a própria magia; terão os hebreus plagiado também o seu esoterismo?
Representemos na nossa imaginação um mito de todos conhecido, que nos permitirá dar os acordes finais, selar o quadro de ideias que temos vindo a desenvolver neste artigo, ao longo destas linhas em que temos reflectido acerca do significado dos mitos gregos. É o mito que narra o concurso musical de Marsias e Apolo, e transcreveu J. Humbert, na sua Mitologia Grega e Romana:
Marsias, natural da Frígia, era um músico notável que, tendo encontrado junto de uma fonte a flauta que Minerva deitara fora, soube modelar com ela dulcíssimos sons. Orgulhoso dos elogios de que era alvo, atreveu-se a dirigir a Apolo um desafio insultuoso, que foi aceite, mas sob a condição de que “o vencido se poria à disposição do vencedor”. Os habitantes de Nisa foram designados juízes do pleito. Marcias foi o primeiro a, colocando-se no meio da multidão, arrancar da sua flauta sons maravilhosos, com os quais ia imitando o gorjeio dos pássaros, o murmúrio das fontes, a voz imperceptível dos ecos, os assobios do furacão, a alegre vozearia dos borrachos. A assembleia, maravilhada, aplaudiu com entusiasmo, e Apolo, sem se deixar deslumbrar por estas clamorosas demonstrações de aprovação, e fazendo-se acompanhar pela sua lira, impôs o silêncio ao entoar um prelúdio melancólico.
Depois, entregou-se ao arrebatamento produzido pela sua arte e infundiu em todos os corações o delírio da mais delicada sensação estética. Apolo fez acompanhar o seu canto destas palavras: “Ariadna abandonada numa ilha deserta, Ariadna chorosa e gemebunda, Ariadna que se censura por ter abandonado o seu pai, o seu irmão e a sua pátria por um amante volúvel, Ariadna que teria por únicas testemunhas da sua dor os penhascos insensíveis e as ondas em perpétuo rugido, Ariadna, afinal, cuja chama sobrevivia, ainda assim, à traição do pérfido ateniense”. As lágrimas botaram dos olhos de todos os presentes, que lhe atribuíram a vitória. Mas a sua crueldade ensombrou a glória de que se fizera credor; agarrou em Marsias, atou-o ao tronco de um abeto com as mãos atadas atrás das costas, e esfolou-o vivo A sua morte provocou a consternação universal. Os Faunos, os sátiros e as Dríades choraram-no amargamente, e as suas abundantes lágrimas deram origem a um rio de Frígia que, por esta razão, recebeu o nome de Marsias.
Marsias representa aqui a luz, a voz da natureza nos seus múltiplos sons melodiosos, e também a alma humana que corresponde a essa mesma natureza, e que faz vibrar no seu seio as suas infinitas vozes e reclamos. A flauta e as suas modelações significam que toda a actividade desta natureza nasce do som de sete notas ou vibrações fundamentais, que os sábios identificaram com os níveis de vibração e de consciência da vida, com a estrutura septenária de tudo o que se manifesta. Também representa a coluna vertebral do homem, a espinal medula e a coluna e luz dos místicos taoístas, através dos quais o homem se liga a toda a natureza, até mesmo às suas essências divinas e imortais. Apolo é, tal como o seu nome indica, a unidade, o “sin-polos” que passa através desta natureza como vento, como música. Marsias cantou a natureza e Apolo a origem celestial da alma humana, representada por Ariadna, a luz mística que guia o Aspirante no Labirinto da Vida e através das provas da Iniciação.
Cantou também o drama desta luz, desta chama espiritual, presa num cárcere de matéria, como Ariadna, sonhando numa ilha deserta, equivalente à dama que espera no castelo que o cavaleiro vença o dragão e a liberte. As lágrimas do jurado outorgando a vitória a Apolo indicam onde se acha o mais profundo das nossas esperanças, onde se acha o sol da nossa liberdade, onde se acha o Caminho. Marsias atado e esfolado na árvore da vida é o sacrifício da Iniciação pela qual a natureza se converte em alma, pela qual o dragão, tal como aparece, creio, nas representações astecas, exala das suas fauces a estrela cujo raio é a alma e a consciência humanas. Tal como canta o tratado místico do Tibete, Voz do Silêncio: ESSA ESTRELA CUJO RAIO ÉS TU!
José Carlos Fernandez
Director Nacional da Nova Acrópole
Lisboa, Junho de 2006
1. Todas a citações do Cratilo são das “Obras Completas de Platão”, da editorial Porrua.
2. Fragmento do Compêndio de Teologia de Cornuto, extraído da obra Os Estóicos Antigos, da editorial Gredos, e tradução de Angel Capelletti
3. Do Editorial da revista Esfinge, editorial NA, nº67, Abril de 2006, pág. 3
4. A reflexões sobre o mito do rapto de Europa e o seu significado foram extraídas do Discurso de ingresso de don Juan Manuel de Faramiñán Gilbert no Instituto de Estudos Giennenses, pág. 10 e 11
5. Do artigo citado no texto
6. Todos os fragmentos da “Arte de Interpretar os Sonhos” são tradução de autoria de Elisa Ruiz García, na Editorial Gredos, 1989.