Apaixonei-me pela personagem de Hipátia desde a minha primeira juventude, numa Escola de Filosofia semelhante em princípios, meios e fins àquela que floresceu em Alexandria há mais de mil e quinhentos anos, alentada pelos ensinamentos da filha de Theon e pelo dom da sua alma.

Passaram-se quase trinta anos e o exemplo da Filósofa é para mim, cada vez mais, uma tocha cuja luz afasta as sombras. Existe um misterioso encanto no seu nome, que em grego significa «a excelsa» e também «a última», e parece uma chamada permanente à justiça, à nobreza, à sabedoria e ao bem.
O estudo desta personagem e as vivências semelhantes àquelas que os seus discípulos narram significou para aquele que escreve estas linhas uma viagem não só pela História mas também pela galerias da alma onde permanecem, não como a sombra de uma recordação, mas com mais vida do que a própria vida, os tesouros conquistados nesta peregrinação que fazemos desde o berço até à tumba.

A sucessão de acontecimentos no Império Romano desde Constantino até à morte da filósofa alexandrina, em pouco mais de cem anos, é a queda e morte de um gigante que assombrou o mundo, que o civilizou, que o iluminou com a chama bondosa da Concórdia, do culto à Honra, do pensamento livre; com a chama bondosa da verdadeira piedade, que é o Vínculo sagrado que nos une ao coração da realidade, com a chama bondosa do Amor e da Valentia. Filhos da Deusa da Beleza (Vénus); e filhos do Deus da Coragem e da verticalidade interior (Marte), os romanos levaram as suas águias aos confins do mundo, e com elas o direito das gentes e as suas leis, que ainda nos servem de modelo de uma sociedade justa, ordenada e racional.

“Não esqueçamos que o nome secreto de Roma, segredo esse que sabemos hoje por ter sido profanado, mas que poderíamos ter intuído, era AMOR, o seu anagrama.”

E quando, já falecida Roma, faltou a chama vivificante deste amor, o mundo precipitou-se nas sombras do fanatismo, da ignorância e das guerras intestinas de todos contra todos: cada um dos povos bárbaros contra os outros, os bárbaros contra Roma, os pagãos contra os cristãos, as diferentes seitas cristãs entre si de um modo inumano e selvagem, e mesmo dentro do Cristianismo triunfante em Niceia, de uns bispos contra outros. A Justiça e a Concórdia voltaram aos seus tronos celestes, abandonando as sombrias moradas de homens que já não se reconheciam como tal, e o ideal de «cidadãos do mundo» que o Império Romano perseguiu e chegou a realizar, em grande parte, converteu-se numa quimera, num sonho impossível.

Fundida a estátua de ouro do Valor (1) para comprar o direito de viver mais um dia, já sem nenhuma nobreza, o mundo romano sucumbiu aos poderes da noite e do sonho, vítimas de medos sem nome nem forma.

Hipátia significa, como dissemos, «a última», nome augural, pois foi a última grande filósofa e Iniciada do Império Romano (2), a última esperança das Escolas Iniciáticas no Ocidente, o último resplendor místico, o último apelo à Concórdia e ao bom senso.

Elevou bem alto a chama dos Mistérios, protegendo-a dos ventos empestados de loucura, próprios da decomposição de um cadáver histórico e com ela devolveu as forças aos cansados da vida e iluminou as sendas de milhares de jovens. A Filosofia é legítima e não um mero simulacro quando ilumina os caminhos da vida, quando devolve a Esperança, quando faz sentir como irmãos a infinidade de seres vivos. Desperta na nossa alma um fogo inextinguível que nos faz saudar como irmãos, do mesmo modo que São Francisco, à Lua e ao Sol, à Água e às Estrelas, ao irmão homem e ao irmão lobo.

Afirma-se, e é certo, que aqueles que vencem são os que escrevem a história. Aquilo que é narrado neste livro pode parecer violento em relação à história que nos é mais familiar, mas remeto-me aos factos, bem conhecidos, além disso, mas pouco divulgados. Estas páginas não querem, de modo algum, despertar nenhum tipo de fantasmas ou pôr a tónica nas diferenças que geram os ódios históricos, mas ao contrário, buscar aquilo que nos une, mas sem ocultar os factos. Tentar penetrar no sentido dos acontecimentos, no esforço da alma humana que avança seja qual for a dificuldade, no significado dos ciclos históricos, que destroem as formas já gastas e estendem as asas do sonho e da noite sobre aqueles que devem dormir… e descansar. As palavras de alguns dos protagonistas desta novela reflectem a dor e a angústia de quem foi perseguido pelas suas crenças, de muitos que já tinham perdido toda a esperança, dos desconcertados, educados numa cultura e forma de vida helénica rejeitada como algo abominável sem nenhuma justificação racional. É o tempo que muda os homens ou são estes quem transformam o tempo e a sociedade em que vivem? É difícil sabê-lo. Este é um paradoxo semelhante à pergunta sobre o que nasceu primeiro, o ovo ou a galinha.

O título do livro reza Viagem Iniciática de Hipátia: Na Demanda da Alma dos Números porque, de facto, o autor quis aprofundar o significado que tinha para os discípulos da filósofa alexandrina a Matemática e a Geometria sagrada como meio de compreender verdades inefáveis, de viver uma realidade que é permanente, e que não só não muda, como além disso chama a alma do filósofo para o Reino da Inteligência no qual, afirmam os sábios, desaparece, como se fosse a recordação de um mau sonho, o medo à morte… e com ele todos os outros medos, pois todo o medo é, no fundo, o medo à mudança.

Notas:

  1. Esta imagem não é só metafórica, os romanos, de facto, fundiram a sua estátua da Virtus, em ouro, para pagar às tropas de Alarico.
  2. Se não era a última, literalmente, pois temos a filha de plutarco o jovem, ou seja, Asklepígena ou o proclo, várias décadas depois, quase todos os historiadores reconhecem que ela é o símbolo do fim do mundo grego (com a sua filosofia), romano (com a sua Justiça) e egípcio (com a sua ciência mística).

Exerto do Livro: Viagem Iniciática de Hipátia: Na Demanda da Alma dos Números

José Carlos Fernandez
Director Nacional da Nova Acropole